População e autoridades em debate com os incêndios florestais de 2021 como «pano de fumo»

June 17, 2024
Terão os fogos florestais a atenção que merecem perante o flagelo que representam? Serão as (poucas) pessoas que residem na serra do Algarve resistentes o suficiente para aguentar as sucessivas incógnitas trazidas pelas alterações climáticas e que tornam qualquer dispositivo de combate mais vulnerável na hora do combate. Estaremos com um nível de prevenção à medida dos riscos? Haverá no terreno uma comunicação saudável entre as autoridades e a população que reclama também para si um conhecimento do terreno que não quer ver ignorado? Como travamos o fogo que acelera consigo o ritmo da desertificação e do despovoamento do Interior? Todos estes tópicos estiveram em cima da mesa-redonda dedicada a debater o flagelo dos incêndios e a gestão do território com os fogos de agosto de 2021 no sotavento do Algarve.

Foram convidados da mesa-redonda moderada pelo nosso projeto MUROS: Alexandre Cardigos, Coordenador da Proteção Civil de Vila Real de Santo António, Vítor Vaz Pinto, Comandante Regional de Emergência e Proteção Civil do Algarve, Sónia Pires, Vereadora do Ambiente da Câmara Municipal de Tavira, António Miranda, Diretor Regional Adjunto do ICNF Algarve, Miguel Mota e Costa, representante da CCDR Algarve, I.P. – Agricultura e Pescas, Hugo Garrido Machado, Comandante dos Bombeiros Municipais de Tavira, e David Santos em representação do Comandante do Destacamento Territorial da GNR de Tavira.

A associação Ecotopia Ativa – que se dedica à defesa do Ambiente, dos recursos naturais e dos ecossistemas – levou a cabo uma sessão multifacetada que durante a tarde de sábado, 15 de Junho, mostrou ser uma ponte generosa entre comunidade local e as diversas autoridades presentes. O acolhimento foi do clube de caçadores dos Castelos em parceria com o clube de caçadores da Corte António Martins; e assim em plena antiga sala da escola primária da Corte, concelho de Tavira, fez-se história na comunidade. O debate versou o flagelo dos incêndios florestais, debruçando-se sobre o caso dos fogos de Agosto 2021 que afetaram a serra do sotavento do Algarve, nomeadamente dos concelhos de Tavira, Castro Marim e Vila Real de Santo António.
Luís Rocheta, Manuel Rodrigues e Rui Horta são três dos protagonistas da curta-metragem «Deixa Arder», com realização de Henrique Mestre, sob a direção de conteúdos de Ângela Rosa. Estiveram de viva-voz na antiga escola primária da Corte António Martins e reforçaram tudo o que já tinham dito para as câmaras em Agosto de 2021, e dias depois das chamas terem consumido muitos dos seus bens. Ou seja, as mesmas considerações foram feitas a quente e a frio com o objetivo de sensibilizar para uma maior atenção a quem continua “ao abandono numa serra consecutivamente desvalorizada”. A dor de quem perdeu tudo ou quase tudo, sendo que muitas dessas pessoas não foram apoiadas financeiramente para reeguer os seus (poucos) bens, é muito bem retratada pela curta-metragem da Ecotopia, mas também é muito bem transmitida por quem tem o poder nas mãos e se mostra impotente. “Muitas das vítimas não puderam ser ressarcidas porque não tinham os seus bens registados”, declarou a vereadora Sónia Pires que tem na câmara municipal de Tavira o pelouro do ambiente e que em 2021, por altura dos fogos, não pertencia ao executivo municipal. A autarca anunciou que o executivo a que pertence está a elaborar a legislação para a criação de um fundo municipal “para dar algum apoio à população que tem anos de trabalho, mas que em segundos fica sem nada”. Ainda não há data para o Fundo em questão entrar em funcionamento.
Serviço Municipal de Proteção Civil Tavira foi criado após incêndios e já gastou 800 mil euros na prevenção
A câmara municipal de Tavira em 2021 não tinha dispositivo de proteção civil municipal. A equipa foi criada no pós-incêndios e  para dar resposta ao flagelo. Recebeu 26 desalojados, bem como evacuou o canil de Santa Rita, do concelho vizinho de Vila Real de Santo António. Miguel Silva é desde então o coordenador da Proteção Civil de Tavira. Contou na sessão que coube à sua equipa fazer um levantamento dos estragos provocados pelas chamas e desenhar uma intervenção musculada na área da prevenção. Desde a limpeza florestal, bem como a criação de faixas de gestão de combustível e a limpeza de aglomerados. Desde 2021 e até este ano 800 mil euros foram já gasto na prevenção através da realização de diversos projetos.
“Futuro tem de passar por investimento de 80% na prevenção e 20% no combate”, diz comandante regional Vaz Pinto
O Comandante Regional de Emergência e Proteção Civil, Vítor Vaz Pinto, garantiu que a estratégia de prevenção e combate aos incêndios na região mais a sul está mais equilibrada desde 2015, contrariando o que até aí representava um grande desfasamento de investimento. “Gastava-se 80% no combate e 20% na prevenção”. O responsável garante que estamos no bom caminho, defendendo que o futuro deverá passar “por se gastar 80% na prevenção e 20% no combate”. E lembrou que “todo o dinheiro que é gasto na prevenção tem retorno, mas o que é gasto no combate não tem retorno nenhum; é queimado, literalmente”. Quanto ao sistema de combate não tem dúvidas em afirmar que Portugal está muito bem preparado estrategicamente e com reforço importante dos meios. Recorde-se que a 14 de Junho, o governo português anunciou “o maior investimento de sempre no sistema de combate aos incêndios em Portugal”, sendo que o Algarve tem este ano mais uma equipa de intervenção permanente e outra de Sapadores Florestais no Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) de 2024, que aumenta também as compensações aos bombeiros.
Perante a vulnerabilidade, só uma melhor preparação ajudará a lidar com fenómenos climatéricos extremos
António Miranda, diretor adjunto do ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e Floresta] não tem dúvidas que “fazem falta mais jardineiros da paisagem”. Referindo-se aos habitantes do mundo rural do Algarve, este responsável diz que são essenciais para a prevenção das catástrofes como os grandes incêndios que antes também tinham condições climatéricas favoráveis, mas que não se despoletavam porque a serra, o campo e as aldeias estavam ocupados por mais pessoas que cultivavam as terras e beneficiavam os territórios. Hoje não existem interrupções do fogo porque falta o cultivo dos terrenos. O padrão dos grandes fogos só mudará se for possível intervir na paisagem e isto só se faz com pessoas no Interior. Face ao despovoamento e desertificação do Interior esta intervenção antevê-se cada vez mais difícil.

Uma das imagens da curta-metragem «Deixa Arder» e que se dedica a fazer eco da dor de quem é vítima de incêndios florestais.

“A política de ordenamento de território que temos não serve”
Miguel Mota e Costa, da área da Agricutura, Desenvolvimento Rural e Pescas da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDRAlg), lembrou a importância que urge da ocupação do Interior por parte dos jovens e o desenvolvimento de atividades económicas rentáveis. “Sem retorno económico as pessoas não se fixam”, lembrando que a atividade cinegética é uma das que mais movimenta o investimento nas zonas rurais. A apicultura foi também uma atividade realçada como bastante rentável pelo responsável que lembrou a necessidade de se apostar, definitivamente, na inovação do que à sua comercialização e transformação diz respeito “ao invés de vendermos o mel a granel para outros irem buscar a sua mais-valia”. A pecuária extensiva está também no leque das atividades que considera promotoras de riqueza da biodiversidade, social e económica, bem como potencial preventivo contra os incêndios. O diretor de serviços mostrou-se empenhado em mostrar o potencial económico do Interior, dinamizando soluções e encontrando novas saídas para problemas antigos.
Já no que diz ao Ordenamento do Território, e sem querer vincular a sua opinião à CCDRAlg, Miguel Mota e Costa, que até há bem pouco tempo foi responsável pela Reserva Agrícola no Algarve, afirmou que tem que haver uma política positiva de ordenamento do território, sendo que a que temos não serve”. Falou em “demasiadas restrições para quem está no Interior poder construir ou ampliar a sua casa”, sendo essas restrições em si mesmas fator de esvaziamento do Interior algarvio.
“As pessoas não têm dinheiro para limpar os terrenos”, garante a GNR

A GNR de Tavira alertou para as insuficiências financeiras da população que não tem verba para mandar limpar terrenos no Interior

David Santos em representação do Comandante do Destacamento Territorial da GNR de Tavira, lembrou na sessão que “a GNR é a entidade que está mais em contacto com a população, sobretudo em época de incêndios”. Defendeu na sessão que “é importante no mundo rural deixarmos os termos técnicos para trás e levar a cabo uma comunicação que seja mais acessível” e garantiu que o que mais encontra no Interior é uma população envelhecida sem força e que se queixa por não ter dinheiro para fazer face às despesas de limpezas dos próprios terrenos.
Bombeiros de Tavira com o dobro dos efetivos do que em 2021 e mais meios na serra
Na frente de combate estão os bombeiros, sendo que a corporação municipal de Tavira diz estar mais preprada este ano, pois viu duplicar o efetivo em três anos, de acordo com Hugo Garrido Machado. O comandante dos Bombeiros Municipais de Tavira anunciou mais meios, nomeadamente a aquisição de um veículo ligeiro de combate a incêndios e um centro de meios aéreos na aldeia de Cachopo.
As crianças estão a aprender sobre prevenção dos fogos e a levar informação para as famílias
No que toca ao concelho vizinho de Vila Real de Santo António, o responsável da proteção Civil, Alexandre Cardigos realçou a importância do projeto que está a levar o tema da prevenção dos incêndios florestais às escolas e aos “mais jovens que são os melhores veículos de informação e promovem a alteração de comportamentos dos pais”. O responsável referiu, ainda, a importância do mapeamento do concelho de Vila Real de Santo António e da ampliação da intervenção por parte da equipa de sapadores florestais; que até aqui estava muito centrado na mata de Vila Real de Santo António, e que agora também já serve a freguesia de Vila Nova de Cacela.
“Andamos a correr atrás do prejuízo, mas continuamos a dificultar a fixação de pessoas no Interior”
Da parte do público a participação foi generosa e ouviram-se elevadas críticas às políticas “que ao longo de 30 anos promoveram o abandono do Interior”. Denunciou-se elevadas restrições “à construção de habitação ou de armazéns agrícolas”. Defendeu-se que a barragem de Odeleite, cuja primeira boca de rega fica a 20 km da localidade onde foi construída, deveria ser complementada por pequenos charcos ao longo da serra para fazer face à escassez de água no Algarve. “Será que a solução para ressarcir sobre as perdas materiais passaria por um seguro obrigatório feito pelos proprietários?”. A questão lançada ficou no ar. E foi também advogado no fórum-cidadania que as “autarquias deveriam assegurar equipamento de trituração dos materiais de limpeza dos terrenos com o apoio financeiro do ICNF”.

Uma das salas da antiga escola primária de Santa Rita encheu-se para acolher a sessão dedicada aos incêndios florestais

Fórum Cidadania, integrado no programa de «Ativar Abril» teve lugar na sessão do passado dia 15 de Junho

Recorde-se que esta sessão da Associação Ecotopia Activa inseriu-se no programa «EQUINÓCIOS» do Município de Tavira. Os três momentos foram a exibição da curta-metragem «Deixa Arder», o Fórum-Cidadania e a Mesa-Redonda. A sessão contou com a presença dos protagonistas do filme: Rui Horta, Manuel Rodrigues, e Luís Rocheta.
A curta-metragem com produção e direção de conteúdos de Ângela Rosa é realizada por Henrique Mestre e conta com música de Silvino Campos, Arte e design de cartaz de Ana Isabel Santos, redação de comunicado e sinopse de Carla Sofia Ferreira e Ana Isabel Santos, suporte operacional de Lívia Viana, Rosa Guedes, Inês Mesquita, Luís Ojalvo e Maria Gomes.
São protagonistas de ‘DEIXA ARDER’ Rui Horta, Manuel Rodrigues, Ivo – Pastor, Eduardo Fernandes, Manuel Romeira e Luís Rocheta. Conta ainda com a colaboração do Clube de Caçadores da Corte António Martins, Clube de Caçadores dos Castelos e ANCCRAL – Associação Nacional de Criadores de Caprinos da Raça Algarvia. Pode ver o trailer aqui.

Ângela Rosa, presidente da Associação «Ecotopia Ativa»


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