Jovem arquiteta faz doutoramento e questiona sobre os lugares que a comunidade local (não) ocupa

Maio 3, 2024
Marta Setúbal é arquiteta de formação e atualmente está a desenvolver a sua tese de doutoramento que, mais uma vez, vai dedicar-se às suas raízes. Natural da cidade raiana de Vila Real de Santo António, no Algarve, conta-nos que em todos os seus movimentos de pesquisa e investigação (também o fez no Mestrado) pretende produzir conhecimento e aplicá-lo na prática; como forma de devolver às pessoas da sua terra que também contribuíram para a produção desse conhecimento. O «Arquivo da Vila» foi um projeto com espaço na cidade através do qual Marta S. teve tempo para auscultar e fazer participar as suas gentes sobre outros tempos, sem esquecer onde estamos e para onde queremos ir. Num ano em que se celebra os 50 Anos do «25 de Abril», Marta Setúbal fala-nos, assertivamente, sobre a importância da Memória e do envolvimento das comunidades no D de desenvolvimento local.

 

Assume que foi educada – tal como todas as pessoas jovens da sua altura, e não só – para o êxodo do lugar que a viu nascer – neste caso, numa das pontas da região algarvia: a que fica a sotavento. Saiu, mas regressa sempre, sendo que não imagina radicar-se nesta terra que é pombalina e iluminista [aquela que contam que foi mandada construir a régua e esquadro por Marquês de Pombal]. Contudo, a partir da sua visão crítico-construtiva desde muito cedo que Marta Setúbal se questiona sobre as mudanças rápidas que a sua cidade tem sofrido, garantindo que não se trata da nostalgia a falar mais alto. É mesmo aquela sensação de que “os espaços que existiam tinham uma determinada qualidade, eram importantes para a comunidade e foram desaparecendo”. A arquiteta sublinha que “aos poucos” e face a “essas mudanças rápidas” há uma consequência evidente; e que passa pela “comunidade perder o seu vínculo aos lugares”, sendo que esses espaços ficam cada vez menos valorizados e com um menor número de pessoas preocupadas com os mesmos. Já os espaços novos: “limpinhos, arranjadinhos, lisos, higiénicos demais e sem memória são sítios onde não nos sentimos agarrados”. Marta fala-nos, por isso, do crescente espírito de individualismo e de superficialidade nas comunidades onde existem menos sensações que promovam a  interrelação de quem ocupa os espaços comuns.

Na principal artéria de VRSA onde as ruínas das antigas fábricas conserveiras se insinuam e com elas a sua história

«Os espaços públicos têm de ser pensados com a participação das pessoas; pois elas sabem o que querem para os seus lugares»
Se quando era mais nova, no início da casa dos 20 anos sente que não conseguia expressar o que sentia, agora, quase outros 20 anos depois – após muitas idas e vindas e profunda investigação – não tem dúvidas em lamentar “que não se pense sobre os espaços e não se auscultem as pessoas”. Marta S. confessa que em determinada altura chegou mesmo a ficar zangada “com as próprias pessoas por não salvarem os lugares que aos poucos íam sendo destruídos na cidade!”. Hoje, mais madura e mais confiante no trabalho comunitário que pretende desenvolver, coloca-se ao lado dessas mesmas pessoas [ou convida-as a juntarem-se às suas inquietações] e cria todo um ecossistema propício para o pensamento coletivo. Promete voltar com o projeto «Arquivo da Vila» [se fizer sentido para a comunidade] e todo o envolvimento cidadão que representou, até porque ficou por se cumprir naquilo que é o levantamento ainda maior das memórias e do registo da ideia que as pessoas fazem para o espaço do seu quotidiano. O Arquivo da Vila foi uma experiência de seis meses onde abriu um espaço vazio e vazio ficou até que os habitantes de VRSA o preencheram de acervo importante para si e para a sua cidade. De referir que o material reunido no espaço daquele arquivo pertencia ao espólio pessoal de cada participante. Para além da dinâmica de recolha e análise em conjunto do material recolhido houve lugar para passeios e para a dinamização de oficinas no espaço público;assim como encontros regulares no obelisco! Este projeto e toda a investigação que está a desenvolver é uma motivação para Marta S. que sente uma “responsabilidade em agir e participar na construção” da comunidade onde também pertence.

Numa das atividades levadas a cabo com a população de VRSA no âmbito do «Arquivo da Vila»

Um arquivo que começou por ser vazio deu lugar a um generoso repositório de memórias a partir de arquivos pessoais de quem habita VRSA

«É preciso repensar o modo como as pessoas se podem deslocar aqui na raia, entre Portugal e Espanha»
Do outro lado do rio Guadiana temos Espanha. Marta não sabe se o facto de ter nascido numa raia foi o que a tornou numa apaixonada pelas fronteiras, sendo que foram já várias as (longas!) viagens que fez pelas fronteiras geográficas no mundo, onde se inclui um périplo pela raia ibérica de norte a sul. Vila Real de Santo António “tem essa especificidade que não pode ser ignorada quando falamos sobre este lugar”. Sendo “impossível pensar em VRSA sem pensar sobre o outro lado”, Marta S. sublinha que “é importante conhecer como acontecem as relações com Espanha ou como poderiam acontecer de acordo também com as ligações que foram sendo geradas ao longo dos tempos”. Lamenta que a Eurocidade do Guadiana [Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial que une Castro Marim, Vila Real de Santo António e Ayamonte] não otimize o potencial de relação entre as pessoas e, desde logo, considera que teria de haver uma alternativa para as pessoas viajarem entre as duas margens. “Atravessar a ponte de carro ou recorrer ao barco que faz a travessia não é acessível a todas as pessoas”, lembra esta arquiteta, avançando que é preciso criar alternativas para que as relações se tornem mais coesas e fluídas entre os habitantes dos dois países. Sem querer doutrinar em relação a qualquer questão, mais uma vez esta investigadora defende que “é preciso colocar as pessoas a partilhar as suas visões, opiniões e a diversidade que lhes estão associadas”.

Da varanda da sua infância, e a partir da sua cidade raiana, Marta avistou sempre a cidade espanhola de Ayamonte. O Guadiana no entremeio de tantas relações.

Marta Setúbal, levou-nos por alguns dos espaços das suas inquietações
A viagem pela raia vilarealense, de onde se vê a cidade de Ayamonte [Andaluzia, Espanha], permitiu que Marta nos levasse por alguns dos seus lugares da memória. A sua e a da sua cidade. As ruínas da indústria conserveira ocupam um espaço insinuado ao longo da Avenida da República. A zona do cais que em tempos foi de desembarque da sardinha e do atum é agora um lugar semi-vazio e subaproveitado. O comboio que ali também passou para desembocar em pleno centro já não passa e o solo está com esses requícios e marca uma divisória entre a cidade e uma zona agora pouco vivida. Do terraço do prédio da sua infância a vista de 360º escancara a beleza do território e mostra-nos o crescimento urbano, onde a mata nacional e a costa de um mar paradisíaco estão por perto sempre.

As marcas no solo de um comboio que já entrou pela cidade dentro. Vestígios que marcam uma separação da cidade com um cais que já foi próspero

 

Mas, afinal, como trazer as ideias e as pessoas para as partilharem? Como criar espaços de encontro e de dinamização dos lugares, respeitando a sua traça, o seu tamanho e as suas mais-valias? Como aproximar os decisores dos cidadãos? Com a visão tão própria de Marta Setúbal fazemo-nos ainda mais perguntas que poderão vir a ter novas e mais respostas em breve. Haja possibilidade de retomar o contacto com as pessoas e voltar a levá-los pelos seus passeios de reconhecimento onde os cinco sentidos ficaram sempre apurados. Nas pessoas com quem foi contactando viu “uma enorme nostalgia por lugares”. Pessoas que lhe forneceram um acervo “muito importante” de informação e que a permitiu seguir para o doutoramento com o objetivo pessoal de continuar a questionar e a tentar levar longe a visão de cada pessoa que se deixa envolver pela sua atuação. O doutoramento no qual está a trabalhar tem por título provisório em inglês; «In situ and moving: collective space embodiment for spatial imagination, action and care» e vai dar primazia “à participação de habitantes de VRSA em todas as fases do projeto”.

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