Cineasta filmou o sentimento dos raianos. É urgente uma cooperação transfronteiriça que combata o silenciamento.

July 16, 2024
Ana Delgado Martins depôs o seu olhar cinematográfico na raia hispano-portuguesa. Portunhol é mais do que a junção informal e criativa de duas línguas. Para a cineasta é um modo de vida único que existe no limite que separa os dois países de norte a sul. «Portunhol» é também o nome da série documental da produtora Real Ficção e da autoria de Ana D. Martins, que fez sucesso na RTP e que ao longo de sete (belos) episódios nos mostra a necessidade de abolir os muros que possam teimar em dificultar uma vida real de comunidade nas regiões transfronteiriças. «A raia é uma subcultura em terra de ninguém em que há uma linha invisível que separa dois povos; que na verdade nunca estiveram assim tão separados e que, pelo contrário, sempre se uniram, sobretudo, nos momentos difíceis”. A realizadora lembra-nos os tempos das guerras, das ditaduras e da fome em que os muros eram saltados em modo de sobrevivência.

 

Exceptuado a zona mais a norte de Portugal e a Galiza (Espanha), quanto mais descemos ao longo da raia – até ao Algarve e Andaluzia – “vamos encontrando as pessoas mais desamparadas e onde o isolamento e o despovoamento se agudizam”. Ora, se neste locais a ligação transfronteiriça não for sendo fortalecida tudo se torna mais difícil e o silenciamento das populações atinge níveis nunca vistos. ” As pessoas que resistem nestes lugares só querem uma economia mais forte, emprego e sentir que existe uma ligação entre os dois lados da fronteira”. Uma ligação que lhes dê escala, que os fortaleça. “Felizmente, o poder político está a despertar para a necessidade de fortalecer um trabalho conjunto. Desde eventos em cooperação transfronteiriça, bem como o desenvovimento das Eurocidades que pretendem ser vantajosas para quem opte por viver nestes lugares de raia”.

Sanlúcar de Guadiana (Andaluzia), terra fronteiriça com Alcoutim (Algarve)

A cineasta, que filmou a série Portunhol entre 2019 e 2022, teve como episódio-piloto a realidade de Alcoutim (Algarve) e Sanlúcar de Guadiana (Andaluzia). Piloto este que lhe valeu um passe para ter o apoio para os restantes seis «Portunhol» [a RTP já a transmitiu por duas vezes]. “Trata-se, assim, de uma série documental de sete episódios sobre terras irmãs na fronteira mais antiga da Europa. A distância entre o que se ganha, o que se gasta, o que se come, o que se dorme, mas também como ambas as culturas se misturam para lá do traço invisível que separa os dois países. A raia dos caramelos, a raia da gasolina mais barata, a raia das guerras e dos tratados de paz, a raia do contrabando, a raia em festa”. Ana D. Martins e a sua equipa seguiu de norte a sul em busca de histórias que na verdade mostram como no  meio de todas as histórias reais as fronteiras se dissolvem.

Estátua de um contrabandista (Alcoutim) que representa a história de sobrevivência na raia em tempo de ditaduras de um lado e outro da fronteira

A raia está envelhecida, mas a equipa de «Portunhol» teve oportunidade de conhecer vários jovens que decidiram fixar-se na raia e criarem os seus projetos para dinamizar a zona de fronteira. São a esperança do presente. Para Ana Delgado Martins, haver quem se mude para a raia, apesar das dificuldades inerentes, “tem muito a ver com a forma como olhamos para as coisas. A raia não é um postal instagramável da vida, mas sim, é genuinidade e laços entre gerações num local onde é urgente repovoar e dinamizar. Muitos habitantes estão a resistir na raia e há mudanças de paradigmas”. Ilustrando que há quem troque a vida urbana acelerada por lugares mais interiores, nomeadamente, através de atividades profissionais de caráter remoto. Será um começo… Mas a artista também nos conta as histórias de jovens que desistiram da escola pela distância a que esta se encontra das casas dos habitantes raianos. “Quem vive em Alcoutim, por exemplo, se quiser ir para o ensino secundário tem de se deslocar para concelhos diferentes, como Tavira ou Vila Real de Santo António”. É um facto que consubstancia uma das razões para o abandono, garante pelos testemunhos que ouviu.

O episódio-piloto de «Portunhol», de Ana Delgado Martins, foi realizado em Alcoutim

Se é verdade que no terreno encontrou quem defendesse a união ibérica dos dois povos de modo a fortalecer a posição de Portugal e Espanha numa Europa das regiões, Ana Delgado Martins lamenta que a cooperação transfronteiriça seja algo que ainda diz muito pouco aos cidadãos comuns. Acredita que só com a promoção de maior empregabilidade e da criação de mais redes de apoios às famílias que se estabelecem na raia é que as pessoas se vão dar mais conta da importância dos fundos da União Europeia para o desenvolvimento da qualidade de vida nas zonas de fronteira. Até lá, é tudo um lugar distante onde a coesão social ainda tem muito para fazer.

Veja ou reveja a série Portunhol aqui

Agradecimentos: À Rádio Comercial, onde a nossa entrevista foi filmada e gravada.

2 Comments

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João Campos July 17, 2024

Sempre a raia no Algarve foi periférica .
Aqui o armamento ,fluxo e refluxo de invasões tornou durante séculos um destacamento.psicologico .
Quem sempre provocou a proximidade ,foi a ilegalidade , o contrabando .
Só depois do 25 de Abril e posteriormente o 25 de Novembro de 1975 trouxe a democracia e fizeram-se “pontes ” para Espanha e a Europa .
Atualmente a Cidade de Vila Real de Santo António perde a periferia da raia e tornou-se um importante mercado de produtos portugueses e não só para a Espanha .Enquanto as lojas tradicionais do Algarve foram “engolidas” pela orojiferacao dos centros comerciais , um enormidade para o distrito de Faro , o comércio tradicional da cidade do Guadiana e vivo, dinâmico competitivo e continua lutador.

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Susana Helena de Sousa July 20, 2024

Muito obrigada pela sua partilha, João Campos. Pela sua visão e noção de potencial que são importantes para sabermos onde estamos e para onde podemos ir. Bem haja! Susana

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