(COM VÍDEO) António Covas: «Em 2030 vamos dizer que a Eurorregião AAA é um foco dinâmico de desenvolvimento ou vamos ter um foco triste, monótono, estagnado que se limita a registar passagens, trânsitos e pouco mais?»

Janeiro 31, 2023

António Covas é licenciado em economia, pós-graduado em economia europeia pela Universidade Católica, doutorado em assuntos europeus pela Universidade Livre de Bruxelas. Foi Professor Catedrático na Universidade de Évora, tendo sido também seu vice-Reitor. Entre 1995 e 1999 foi assessor do Ministro da Agricultura. É Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve e foi diretor do seu Centro de Investigação e Desenvolvimento de Economia Regional (CIDER). Da sua autoria temos cerca de 20 livros onde a União Europeia muitas vezes está ao centro. Podemos dizer que o seu conhecimento aprofundado sobre assuntos europeus permitiu não só descodificar muitas turbulências e fenómenos como também prever outros.
Quisemos conversar com o Professor para perceber como devemos olhar para a figura da Eurorregião Alentejo, Algarve e Andaluzia (AAA). Sabendo nós que é um entusiasta, mas também crítico do desenvolvimento desta figura que serve três regiões de dois países [Portugal e Espanha], deixamos aqui o seu contributo para o futuro. «Esse lugar furtivo que quando lá chegamos já lá não está», tal como costuma dizer.

Entrevista: Susana Helena de Sousa
Fotografias e vídeo: Eduardo Pinto

 

MUROS (M): O que nos traz aqui hoje é uma urgência em falar de cooperação transfronteiriça. O MUROS nasceu para contribuir com o seu papel de comunicação para informar e dinamizar no seio da cooperação transfronteiriça na Eurorregião Alentejo, Algarve e Andaluzia (AAA), nomeadamente, divulgando a sua existência, propósitos, desafios, mas também alertando para os problemas que a norteiam e motivando uma maior aproximação dos seus cidadãos no propósito de desenvolvimento que a Eurorregião encerra. É com um prazer maior que afirmo que o MUROS sente-se inspirado por uma analogia que o professor António Covas faz sempre que se proporciona, dizendo que «AAA» em rating bancário é o melhor que se pode atingir! É uma boa imagem e sempre que aludiu à mesma arrancou sorrisos da plateia. Aqui chegados e no decorrer de plena década como encara o futuro deste triplo A até 2030!?

António Covas (AC): Eu costumo sempre dizer que é importante falar sobre o futuro; uma entidade muito furtiva que quando chegamos já lá não está!.. Mas em relação a esta região tão especial que é um triplo A – os economistas diriam logo que estamos numa super região, porque o triplo A é o melhor de todos! -, em relação, especificamente, ao seu futuro talvez fosse melhor contextualizar esta década 2030 para perceber quais são os limites e as margens de liberdade que uma pequena região como esta pode ter. Que papel, que protagonismo até 2030? Há três ou quatro tópicos que vale a pena termos para essa contextualização. Nesta década vamos passar pelas chamadas «Grandes Transições» na medida em que estamos a atravessar uma grande transformação. A questão é que estas grandes transições têm tido impactos tão devastadoras que não conseguimos delimitar os seus efeitos. Temos a transição Climática que é, à partida, a mais devastadora de todas; a Energética, a Ecológica, a Demográfica, sobre a qual pouca gente fala, a Migratória, a Digital, a Laboral; que tem um impacto imenso sobre mercado de trabalho, a Sociodemográfica; que é um assunto muito pouco falado também e as questões ligadas à Cultura e à Investigação. Portanto, há aqui um conjunto de transições que nós não somos capazes de delimitar quais vão ser os seus efeitos até ao final da década; o que cria uma incerteza inusitada. Depois, em relação ao Algarve e ao Sul de Espanha – portanto, passamos da macroescala para a microescala – para mim seria, absolutamente, e vou ousar utilizar a palavra «ridículo», ou risível, que no final da década 2030 concluíssemos que o principal efeito do PRR (Programa de Recuperação e Resiliência português) e do PT 2030 (Portugal 2030) fosse a monoindústria turística do Algarve. Ou seja, que o Algarve se tivesse transformado numa monoindústria. Ora, então, nós falamos tanto no risco de não especializar em demasia uma região, de não colocar os ovos todos dentro do mesmo cesto, e vamos concluir no final da década que o Algarve nunca foi tão intensivo no turismo como em 2030?!… Então e a famosa base de diversificação económica da região!? Da mesma forma que não gostamos de um olival super intensivo eu também não gosto de um turismo super intensivo. E nós corremos esse risco: uma turistificação abusiva desta monoindústria que é o turismo. Depois há um terceiro aspeto que é o seguinte: o Algarve tem 430 mil habitantes – qualquer cidade europeia tem 430 mil habitantes – e nós perguntamos qual é a sociodemografia que vamos ter no Algarve até 2030? Com quem é que nós vamos fazer o Algarve de 2030? Porque as pessoas estão a envelhecer, o país está a perder população. Quem é essa sociodemografia? O tal cisne negro que pode emergir durante a década é que concluamos que temos uma espécie de sociedade dual. Eu não gostaria que isso acontecesse… como se nessa sociedade dual tivéssemos 200 ou 300 mil residentes em segunda ou terceira habitação para quem foi construído um imobiliário de luxo ao longo de todo o Algarve e depois tivéssemos 150 mil ou 200 mil estrangeiros importados e empobrecidos a trabalhar no setor do turismo. E o algarvio é uma espécie de saudade… ou porque emigrou, foi viver para outros pontos do país ou decidiu fazer outras opções na sua vida que não passam pelo Algarve. E é como se a região sofresse uma gentrificação extensiva. Ou seja, em resposta a uma turistificação intensiva os algarvios responderiam com uma gentrificação extensiva. Por isso é que me pergunto: que sociodemografia vamos ter no final da década? Ou como é que vamos atrair talentos para a região do Algarve? Eu preciso de responder a essa questão, se não corremos o risco dos algarvios, não querendo empobrecer, irem trabalhar para Espanha onde ganham o dobro, exercendo a mesma profissão.

E, então, a Eurorregião fica numa situação paradoxal em que afinal o fluxo migratório funciona só num sentido. Para aqui vêm os residentes espanhóis para a terceira habitação e para lá vão os vão os trabalhadores portugueses para não empobrecer; o que seria dramático. Não acredito que isso vá acontecer. A pergunta que eu deixo é: a Eurorregião é um foco dinâmico de desenvolvimento porque nós conseguimos fazer os investimentos certos daqui e até 2030, ou seja, demos-lhe tempo para ela crescer e em 2030 quando fizermos o balanço vimos que estamos bem sucedidos, estando a eurorregião de 4/5 milhões de habitantes a crescer – ou vamos dizer que criámos um foco triste, monótono, estagnado que se limita a registar passagens, trânsitos e pouco mais? Fica a pergunta para 2030, mas até lá temos de trabalhar intensamente.

 

M: Quando é que uma Eurorregião passa a ser não só uma ferramenta dos políticos, mas também uma ferramenta dos cidadãos? Pois sabemos que é demasiado importante que os cidadãos transfronteiriços se sintam integrados, cúmplices e companheiros de caminho dos vizinhos de cada região de forma intergeracional para a construção de novas soluções para velhos problemas.

AC: Não é fácil. Repare que há aqui uma espécie de ciclos concêntricos. A Península Ibérica é aquilo que se chama a macorregião e que tem 65 milhões de habitantes. O sudoeste peninsular são os 12 milhões de habitantes. Depois temos a Eurorregião AAA, a Eurocidade do Guadiana… Há anéis concêntricos. Não digo que sejam níveis de decepção cada vez mais pequenos, mas…

M: Mas o exemplo vem de cima. Se não funciona ao nível mais macro podemos imaginar que funcione ainda menos ao nível mais micro…

AC: É, é… Mas sabe, o político em cima, na capital, não joga com as emoções e os sentimentos. O político insinua e seduz. Porque ele está lá quatro, cinco ou seis anos e tem de vender um produto tão depressa e tão bem conforme possa. Eu fui verificar o que a Eurorregião Norte de Portugal-Galiza fez nos últimos 30 anos, aquilo que foi mais emblemático em matéria dos cidadãos, e é muito curioso. É uma espécie de «Geografia Sentimental», «Geografia dos Desejos». Fui encontrar coisas como «Os Jogos do Eixo Atlântico», a «Bienal de Pintura do Eixo», a «Regata do Eixo», o «Prémio de Narrativa Literária», a «Capital da Cultura do Eixo», a «Mostra Turística do Eixo», o «Observatório Urbano do Eixo», o «Guia Transfronteiriço do Trabalhador Norte-Galiza». Se quiser, são precisos três, quatro eventos que tenham prestígio junto dos moradores transfronteiriços e a nível internacional. Eu estou a ver em Vila Real de Santo António, por exemplo, o «Centro de Treino de Alto Rendimento» que pode ser um excelente exemplo de multiplicação, mas também pode ter um centro de acolhimento e hospitalidade para refugiados. E talvez seja melhor anteciparmos o problema antes que ele rebente nas nossas mãos. Será importante que na zona, justamente transfronteiriça, tenhamos qualquer coisa. Ou mesmo na área da Bioeconomia e da Economia Circular. Ter algo ligado à Economia Azul. Porque estamos numa zona que junta a foz de um rio com um oceano – é ponto de contacto de uma linha de água com uma massa de água. É o ponto ideal para se fazer qualquer coisa. Ainda por cima a Universidade do Algarve tem dois laboratórios associados na área das ciências humanas. É um investimento ligeiro: não é uma ponte sobre o Guadiana, nem o AVE [comboio de Alta Velocidade] que liga Sevilha a Faro, mas sim atividades que deixam saudades no cidadão comum. Já para não referir as «vias verdes» para os jovens e para os mais idosos; seja para visitar uma exposição em Espanha ou Portugal, mas também para o programa de rede de cuidados de saúde deveria haver uma espécie de «via verde». São coisas que fazem a diferença, que dizem respeito a pessoas comuns e que deixam saudade e lembrança: a tal «Geografia Sentimental», a «Geografia dos Desejos». Temos de fazer as duas dimensões: a dimensão política infraestrutural, mas também a dimensão das microliberdades, como eu costumo dizer: os pequenos nadas que a vida tem!

 

M: No contacto que tenho com muitas pessoas na Eurocidade do Guadiana e na Eurorregião AAA sinto que muitas delas que, na prática, levam a cabo de forma informal iniciativas que se configuram naquilo a que o professor apelida de «Geografia Sentimental» não se identificam com as figuras formais ou com as estruturas operacionais, tal como se apresentam a Eurocidade ou Eurorregião. Essas pessoas não se reveem nas suas abordagens. Sem falar que a maioria não sabe que está, nomeadamente, inserida numa Eurorregião.

AC: O Eixo Atlântico fez outra coisa curiosa: uma exposição itinerante com os principais problemas e projetos da Eurorregião. Criou um serviço de estudos e elaborou essa exposição que foi mostrada para auscultar os cidadãos nas principais cidades. Na Eurorregião AAA, muito provavelmente um indivíduo que viva em Faro desconhece os problemas de Ayamonte ou Huelva e o mesmo acontece ao contrário.

 

M: Mas para si é importante que haja esse conhecimento.

AC: Claro que é: são dois planos e a Eurorregião não pode abandonar um deles, nomeadamente o da cidadania de vizinhança, pois no campo da União Europeia (UE) estamos a falar dos vizinhos.

M: O professor é, na minha opinião, o maior entusiasta, mas também o maior crítico do funcionamento de figuras como a Eurorregião AAA ou Eurocidade do Guadiana. Na sua opinião quando a UE cria estas figuras com que propósito o faz. É explícito que são estruturas para o cidadão?!

AC: Não está explícito, mas é implícito. O próprio Tratado da União Europeia, no artigo 2.º, diz logo que é importante que haja uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. E em relação à Eurorregião é o mesmo; no fundo é uma Europa dos vizinhos. O problema é que os horizontes temporais dos agentes que estão no terreno não são os mesmos; estamos em rota de colisão quase sempre. Os políticos têm um horizonte temporal mais curto, o académico pode ter um horizonte mais largo, as populações têm um de muito curto prazo e por isso são muito críticas; porque lhes falta horizonte. O cidadão comum quer resolver um problema de hoje para amanhã, sendo que muitas vezes não sabe qual o ciclo de vida de serviço e produto. Esta é a dificuldade, mas também é o desafio da política que passa por ligar estes diferentes horizontes temporais. O homem de Estado hoje em dia é o indivíduo que dá vazão a esses diferentes horizontes temporais. O AVE não se faz em dois anos, mas há outras coisas que se fazem e que são também muito importantes.

 

M: Falta uma governança real.

AC: É mais fácil dizer do que fazer… Nós temos dois tipos de governança: a vertical e a horizontal. No Eixo Atlântico as mais de 30 cidades com o mesmo estatuto conversam horizontalmente. Mas no caso da Eurorregião AAA estão juntas: uma região como a Andaluzia que é politicamente muito poderosa com uma região chamada Algarve e outra chamada Alentejo. Estas duas não existem como região, são as chamadas NUTS [Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos] e ninguém se apaixona por uma área administrativa porque ninguém votou o presidente daquela região ou da daquela área… Nós temos aqui três regiões que não comunicam. Então o que é que elas fazem?! Fazem sessões de protocolo que é o que elas sabem fazer. Assina-se protocolo, anunciam-se ideias, mas que ninguém está muito empenhado em implementar. Porque os responsáveis são protagonistas políticos, mas não são atores no terreno, sendo que muitas das coisas pré-anunciadas não são executadas porque faltam atores no terreno, empreendedores, liderança, grupos.

 

M: Tendo em conta essas disparidades e dificuldades, faz sentido perguntar se a criação da Eurorregião AAA foi um erro?

AC: Não foi um erro, mas a Eurorregião AAA é sobretudo um projeto intermunicipal e ainda não conseguiu passar daqui. Para que serve a Eurorregião? Serve, por exemplo, para justificar a Bruxelas que um projeto que o município de Castro Marim vai executar é de características transfronteiriças: o argumentário é inteligente para que se consiga justificar os projetos. Isto para lhe dizer que a Eurocidade do Guadiana pode justificar todos os projetos a esse nível, mas na prática quando vamos ao terreno aquilo serviu apenas para que Castro Marim ou VRSA pudessem receber verbas de modo a levar a cabo projetos/obras. No final é um somatório de várias verbas e se o artifício for bem feito o projeto pode fazer-se a título gratuito, sendo subsidiado por vários programas.

 

M: O que diz faz toda a ligação à minha próxima pergunta, pois em novembro em Ayamonte, na apresentação do Interreg VI foi sublinhado que a nova geração POCTEP [Programa Operacional de Cooperação Transfronteiriça Espanha Portugal] pretende, mais do que nunca, que os projetos representem, verdadeiramente, cooperação transfronteiriça. É razoável que se chame a atenção para a necessidade dos projetos promoverem a cooperação transfronteiriça ou é sinal que muito tem ficado por fazer no âmago da cooperação que tem já cerca de 30 anos?

AC: Sempre que eu falo com os técnicos e dirigentes da função pública eles dizem-me isso, não podem é dizê-lo publicamente. Mas dizem-no com pena, lamentando, mas de certa forma condescendentes porque compreendem que não há atores no terreno, não há liderança para tornar real essa cooperação transfronteiriça. É difícil juntar concelhos se não houver um ator no terreno que saiba lidar com todas essas sensibilidades. E não é fácil encontrar esse ator, ainda por cima numa região que toda ela está a afunilar. Quando uma região como o Algarve começa a afunilar para um único setor como é que podem aparecer atores com outras vocações? O mesmo se diga do Alentejo… Há dois anos escrevi um artigo que se chamava «Marginal do Guadiana» que no fundo dizia que temos um rio que se fosse navegável até Mértola poderia ter uma marginal que levasse à repovoação parcial deste território. Entretanto, deixou-se de ouvir falar da navegabilidade do Guadiana; fazem-se uma coisinhas, uns portinhos aqui ou acolá com programas do dinheiro de cooperação transfronteiriça, mas não se faz, verdadeiramente, navegabilidade. Evocou-se o rio de fronteira para conseguir a verba e para esse efeito é excelente, pois a Comissão Europeia não vem aqui com drones para saber quantas vezes se passa para um lado e outro do Guadiana! Os projetos são muito pequenos porque os concelhos também são muito pequenos. Há uma enorme falta de escala.

 

M: Mas a Eurorregião AAA pretende dar escala, não é?!…

AC: Pretende, mas se não se fazem os investimentos da macropolítica os pequenos projetos não surgem. A região está de tal forma deprimida e vulnerável que não é somando Castro Marim a VRSA e Ayamonte que eu resolvo o problema porque não há massa crítica; não tem impacto.

M: O IC 27, que estava previsto ser construído até à Beja e que parou em Alcoutim, era importante enquanto macropolítica com capacidade de atrair esses novos atores…

AC: Seria muito importante como via de acesso desde Espanha, sem dúvida. Mas deixe-me dizer-lhe mais um risco que tem a ver ainda com o modelo de regionalização. A regionalização em Espanha é mais independentista e a nossa é mais administrativa. A evolução de partidos radicais e populistas em muitas regiões de Espanha não deixam antever nada de bom e pode acontecer aquilo a que muitos chamam a formação de democracias iliberais em alguns países; e que nós venhamos a ter como vizinha uma região chamada Andaluzia com um governo autonómico liderado pelo Vox ou pela ala mais radical do Partido Popular. Se isso acontecer a boa vizinhança pode ir por «água abaixo» e nessa altura a Eurorregião perde muito das boas relações que as autoridades e dirigentes mantêm entre si.

M: Estaria em causa toda a escala e futuro deste território ibérico. Por outro lado, o avanço do processo de regionalização em Portugal pode ajudar ao funcionamento da Eurorregião?

AC: Pode, pode.

 

M: Portanto, vê com bons olhos esse caminho que está a ser trilhado neste momento.

AC: Sim, sim. Foi uma resolução do Conselho de Ministros; é muito recente. Transfere uma série de competências e há já alguma polémica porque a atribuição de recursos não acompanha a transferência de competências, mas seja como for é sempre bom para uma região ter mais atribuição em matéria de recursos e competências; digamos que fica com mais massa crítica de intervenção e o trade off com a região vizinha é mais fácil de acontecer. Com mais competências podem trocar mais facilmente argumentos.

 

M: Podemos, então, olhar para esse processo de regionalização como uma oportunidade para o funcionamento da Eurorregião AAA.

AC: Sim. Portanto, se tudo correr bem na União Europeia até 2030; eu espero que sim porque há muito dinheiro para gastar e espero que o gastem bem, as eurorregiões podem atravessar um período muito positivo. Esperemos que a guerra termine rapidamente e que o problema da gestão das fronteiras por causa do fluxos migratórios seja resolvido, satisfatoriamente – neste momento estão a rever o «Pacto de Dublin», um pacto sobre migrações; é desejável que isso também seja revisto rapidamente. Com os vários PO’s [Programas Operacionais] que aí estão podemos ter até ao final da década – e agora já estou a ser mais optimista! – um período relativamente pacífico. Seria de mau agoiro eu dizer que num período com tantos recursos à disposição nós iríamos passar pela fase turbulenta. Não é isso que se deseja, não é isso que eu quero e tenho a certeza que não é isso que vai acontecer.

 

M: A presidência da Eurorregião AAA é rotativa, e de acordo com o seu novo presidente [o presidente da CCDR Alentejo] as prioridades de trabalho são: «Economia do conhecimento no sentido de alcançar um crescimento inteligente através do desenvolvimento tecnológico e inovação em todos os setores, promovendo a revolução digital e a inteligência artificial»; «Cooperação e integração económica, fortalecendo a competitividade empresarial e o espírito empreendedor»; «Participação dos cidadãos nas atividades desenvolvidas no âmbito da cooperação, bem como a sua plena integração social através de um crescimento integrador e inclusivo que promova a formação, a mobilidade laboral e a melhoria da empregabilidade e proteja o seu bem-estar e saúde»; Economia azul através das potencialidades do ambiente marinho e costeiro na área de cooperação»; «Desenvolvimento sustentável, que protege e promove o ambiente, a biodiversidade, o património cultural e natural, bem como o combate às alterações climáticas, promovendo a transição para as energias renováveis e aumentando a eficiência energética, no quadro do European Green Deal»; «A conectividade, acessibilidade e mobilidade na área da cooperação e ordenamento do território». Por seu lado, o professor António Covas ao longo dos anos já deu a conhecer aquilo que considera ser um plano de trabalho para a Eurorregião AAA. Na sua opinião, as prioridades da presidência desta eurorregião fazem sentido neste momento?

AC: Eu penso que sim. Costumo dizer que há uma espécie de colar de pérolas que qualquer Eurorregião deve seguir. E a primeira pérola tem que ver com o património e a paisagem, a segunda pérola com a ciência e a tecnologia e a terceira pérola com a arte e a cultura. Geralmente, os objetivos e as metas vão seguir este alinhamento e há programas europeus para estas áreas. Repare, eu não posso fazer um projeto que não tenha subsídios e financiamentos que o alavanquem. Ninguém se atreve a fazer uma coisa dessas. Por isso falamos em governança multiescala, ou multiníveis, que é a mais importante que vamos ter nesta década. Isto requere uma ginástica administrativa impressionante! Porque um projeto que se faz de Bioeconomia e Economia Circular na foz do Guadiana vai precisar de cinco níveis: o local, o transfronteiriço, o regional, o nacional e o europeu. E o financiamento chega, praticamente, aos 100% de dinheiros públicos. Sendo que pode ser um agente privado a fazer esse investimento.

 

M: Muito se tem dito acerca do fenómeno «Nómadas Digitais». Podem ser vistos também como alternativa para combater o despovoamento do Interior? O POCTEP pode ser uma janela de oportunidades de financiamento para estes movimentos sociais e laborais?

AC: Em Mértola foi criado um centro de investigação; é o tipo de iniciativa que precisa de investimento do POCTEP. Se não fizermos acompanhar essas iniciativas em zonas de baixa densidade com a construção de uma residência, praticamente, gratuita para alojar jovens investigadores ou estágios de investigação aquele centro nunca terá a trabalhar nas suas atividades jovens investigadores ou estagiários. E esses jovens estão ali, mas também estão a trabalhar para outros projetos que estão a quatro mil quilómetros de distância… Portanto, os nómadas digitais têm de ter condições de oferta de residência e de circulação para que decidam por onde circulam e onde querem ficar. Eu não tenho qualquer dúvida que se nós tivéssemos até 2030 o AVE de Sevilha-Huelva-Faro que depois permitisse desde o Alfa em Faro irmos para a Galiza, fazendo a Espanha pelo Sul de Portugal, a situação dos nómadas digitais era muito mais intensiva, mas também muito mais transitória. Vinham muito mais e moviam-se muito mais entre os dois países. São ao mesmo tempo o lazer e o trabalho o que corresponde ao hibridismo que é uma tendência cada vez maior no mundo laboral. As residências artísticas e de investigação são fundamentais.

 

M: Tendo em conta todos estes fenómenos, oportunidades e visão, podemos depositar na Eurorregião AAA esperança para a fixação de pessoas no seu território, nomeadamente, combatendo o abandono do Interior dos territórios já tão despovoado? Fomentando novas indústrias, acolhendo e valorizando novas visões e atividades de negócio? Proporcionando condições para o crescimento ao que o professor chama «2ª ruralidade»?

AC: Não acredito muito, para ser sincero. Em relação ao trânsito sim, mas em relação à fixação não. Porque quanto mais veloz for a passagem mais eu decido ficar onde estava porque vou e volto rapidamente. Não tanto a fixação, mas mais a mobilidade.

 

M: E do plano de ação que desenhou para a Eurorregião AAA o que gostaria de destacar como urgente nesta fase?

AC: Custa-me termos uma marca que é o triplo A e não a utilizarmos para promover certos bens e serviços que temos na região. Uma das prioridades que eu desenharia para a eurorregião seria uma marca coletiva e IGP [Indicação Geográfica Protegida] triplo A para os parques naturais do território em causa: Vale do Guadiana, Ria Formosa e Donana [Huelva, Espanha]. Os parques naturais e os seu produtos deviam ser prioridade para a eurorregião tirar partido, bem como das suas amenidades paisagísticas no interior dos parques. Donana, apesar de alguma massificação turística que já tem, pode ser um bom exemplo para o parque do Vale do Guadiana que precisa de ter gente para dar vida à margem esquerda do rio. O que pode dar mais vida à margem esquerda do Guadiana senão o seu parque natural?! Desde que seja monotorizado e controlado como deve ser. Os percursos de natureza são excelentes enquanto atração. Portanto, esta marca para os parques seria muito importante. Há uma série de produtos que podem ser perfeitamente vendidos na Eurorregião com IGP.

Eu gostaria muito, e isto diz-me algum respeito, que houvesse uma rede de extensão das associações empresariais para estagiários universitários recém-licenciados. Senão como é que eu atraio talento para a região do Algarve? Eu gostava de receber os estagiários de Espanha para trabalharem aqui e morar ali, são os tais vizinhos que estão longe…

Outro projeto seria um Centro Ibero-americano (existe um em La Rabida, em Huelva). Aqui eu chamava-lhe Ibero-Atlântico senão afasto os africanos e eu não quero afastar os africanos. Dirigido para Portugal e Espanha, mas também para o Atlântico Sul: os PALOP estão lá em baixo e a América também lá está. E isso era também interessante para captar os jovens talentos desses países. Assim estaria a receber não fluxo migratório errático, mas sim jovens talentos. E isto não tem nada de extraordinário. Juntavam-se as várias universidades de um lado e outro da fronteira para criar a plataforma ibero-atlântica e levarem a cabo a rede de jovens talentos; criando a tal iberofonia.

Depois as «vias verdes» para os jovens e mais idosos, sobretudo, para os cuidados de saúde mais diferenciados. Há cidadãos algarvios que vão fazer TAC’s [Tomografia Computorizada] a Espanha. Haver protocolo entre hospitais e centros de saúde faz todo o sentido. Ainda por cima temos uma coisa chamada «Centro Hospitalar Universitário do Algarve» que por maioria de razão pode estabelecer protocolos com o outro lado, tornando tudo mais simples. Para os que chamo «Grandes Doentes» fazia todo o sentido haver uma «via verde» para cuidados diferenciados.

É preciso, também, fazer alguma coisa na área da Economia Azul, na Bioeconomia. O Algarve tem um projeto espetacular na área das microalgas, na área da nova alimentação. Há muito trabalho já em curso que, facilmente, se interliga.

 

Agradecimentos:
Câmara Municipal de Tavira e Biblioteca Municipal Álvaro de Campos pela cedência do auditório e técnicos para a realização da entrevista


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