Muros no jornalismo: quem os não tem!?

Janeiro 15, 2024

Falar de jornalismo para mim é quase como contar a minha história desde «quando eu era pequenina!…». Mas soa-me bem, na medida em que escrever sobre este tema é muito do assumir sobre a minha inocência até bem tarde. O amor cega-nos, não há dúvida, mas num deslize mais agudo – aquele que seca as nossas entranhas – é capaz de se transformar em mágoa (e depois pó e depois nada). Vale-nos sempre a transformação e a aprendizagem.

Aos 10 anos – bem avisei que começava lá atrás – frequentava eu o clube de jornalismo da escola. Éramos mini-jornalistas com grandes sonhos. Será sempre memorável para mim a entrevista que fiz a um antigo diretor do Parque Natural da Ria Formosa, em Faro, no Algarve! Éramos um grupo de três, sendo que o colega Nuno ficou incubido de realizar as perguntas, de acordo com o guião de entrevista que preparámos nas aulas do clube com a ajuda do professor. Já no gabinete, a mesa do, então, diretor marcava a distância necessária entre perguntas e respostas. Por outro lado, as diversas tonalidades do nosso nervosismo marcava o grau da desenvoltura para realizar a entrevista de viva-voz. O Nuno na «hora h» não conseguiu fazer as perguntas previstas. Bloqueou. Nada mais natural para uma criança de apenas 10 anos. A Ana, a menina com o dom da palavra e os olhos brilhantes, suplente número 2, também se recusou a fazer a tarefa pelas mesmas razões do Nuno. Sobrava eu; a suplente número 3 – mas, na verdade, a que desde o início queria, em segredo, ser a primeira opção!). No derradeiro momento, tive medo como os outros, mas sem vergonha assumi, prontamente, o papel de jornalista com o gravador em punho. Ah, que glória naquele dia! O meu sonho realizou-se.

Infelizmente, a formação de «mini-jornalista» foi muito rápida para mim, pois fui viver para Almada no final do primeiro período do 5.º ano. Contudo, ficou o «bichinho» e desde então soube que «quando fosse grande queria ser jornalista». As pessoas estavam convencidas que eu queria ir para televisão, mas eu torcia sempre o nariz e afirmava que a minha paixão era a imprensa escrita. O que me motivava era a escita e a leitura; e não a imagem. Na minha ideia, ser jornalista era estar intensamente na profissão sem contar com a importância da imagem bonita ou bem posta para as câmaras (falamos do final dos anos 80 do século passado). Quanto às seções prediletas, eu imaginava-me a trabalhar na cultura e na política. Aos 17 anos tive a minha experiência amadora numa redação profissional: escrever e fazer a locução da rubrica de cultura da tarde na rádio local da zona onde vivia. Hoje, conhecida como a alternativa «Rádio Radar», chamava-se antes «Rádio Voz de Almada». Nesse período, em minha casa colocavam o pequeno aparelho de rádio ao centro da mesa para me ouvir. Não raras vezes eu chegava e ainda lá estavam sentados a escutar a telefonia, seguindo a emissão que se multiplicava entre desporto, atualidade, política e muita animação musical. Os meus vizinhos, que também me ouviam, diziam que eu tinha uma voz muito meiga, que era bom escutar-me. Eu sorria-lhes por educação, mas ficava desapontadíssima. Eu queria ser jornalista e para mim ter uma voz meiga não condizia nada com uma profissão que relata factos de forma isenta…

Consegui entrar na formação superior de jornalismo no Instituto Politécnico de Setúbal. Foram cinco anos de um percurso bi-etápico com uma formação altamente prática e promotora do contacto com o mundo real da profissão. Característica que sempre me agradou. Realizámos inúmeros estágios e formações graças aos protocolos estabelecidos pela minha Escola Superior de Educação e diversas entidades. Sendo que, inclusivamente, tive a oportunidade de fazer a minha formação de imprensa escrita em Lisboa, no CENJOR – Centro Protocolar de Formação de Jornalistas. Durante o curso no Politécnico de Setúbal, era generosa a liberdade que nos era dada para a realização das nossas práticas, sendo que eu tive o gosto de poder imaginar qual o modelo mais satisfatório para cumprir as tarefas nos vários trabalhos levados a cabo. Por exemplo, foi um marco para mim quando realizei uma análise a um texto do histórico do CDS-PP Diogo Freitas do Amaral através da lupa da histórica comunista Odete Santos. Esta mulher intensa era cliente habitual num bar cultural e icónico da cidade de Setúbal; e onde eu trabalhava à noite (para pagar as contas, porque estudar nunca foi tarefa barata). Um dia tive oportunidade de lhe dizer que me daria uma grande satisfação contrapor a sua visão com a de um político como Freitas do Amaral que estava nas suas antípodas. Odete Santos achou a ideia interessante e permitiu-me esse maravilhoso cruzamento de pensamento. Tal como foi marcante quando para a minha tese dedicada ao Serviço Público de Televisão entrevistei Carlos Pinto Coelho – comunicador nato e homem repleto de ideias e conceitos claros sobre a comunicação e cultura. Na altuar discutia-se se a televisão pública deveria manter os dois canais ou ter apenas um. Curioso que na minha tese fui orientada por Leonídio Paulo Ferreira, sendo hoje um dos diretores do icónico jornal «Diário de Notícias» cuja crise motiva este meu texto de opinião.

Tendo em conta toda a amplitude de experiências e conhecimento sobre o mundo real que o curso frequentado no Politécnico de Setúbla me proporcionou, a par da minha apetência mais para a prática do que para a teoria, o que podia eu pedir mais para a minha formação!? Até determinada altura, pensava eu que NADA, mas afinal teria de pedir TUDO. Certo dia, uma professora de uma das disciplinas do curso [ligada à televisão, nomeadadamente à RTP] falou-nos que tínhamos de ter em conta as pressões económicas e políticas quer eram feitas sobre o jornalismo e os jornalistas. Eu já teria os meus  20-21 anos, mas a minha ilusão era enorme. COMO ASSIM? Não, o jornalismo não é tão livre, objetivo e de investigação como vem nos livros. AI NÃO?! Como é possível que eu nunca me tivesse dado conta disso? Eu pensava que estava a ser preparada para uma profissão altamente blindada pelo facto de ser uma missão importantíssima para a saúde democrática. Na reta final do meu curso, saber que não era nada bem assim não me iria permitir fazer a marcha à ré necessária. É que não me podia dar ao luxo de tirar outro curso. Isso estava fora de questão. Aquela revelação traduziu-se num enorme murro no meu estômago jovem, que não conhecia ainda o poder de uma água morna com açúcar para curar a azia. Só me restava terminar o curso, já muito magoada. Pois, apesar de surpreendente, o que a professora nos desvendou soou-me tão claro e fez-me tanto sentido que o assumi tal qual verdade nua e crua.

A partir desse momento, a minha relação com o jornalismo transformou-se completamente. Deixou de ser a minha paixão e passou a ser algo na vida com o qual teria de saber lidar. Amor desinflado colocava-me agora de forma totalmente impreparada para lidar com uma profissão minada pelas armadilhas do poder. Não tinha qualquer jogo de cintura para isso, mas sabia o que não queria. Tal como diz o poeta José Régio «não sei por onde vou/sei que não vou por aí».

Quando me vi no último trimestre do curso tive a sorte de fazer um estágio num lugar onde pude ser honesta comigo e com os outros. Sem magoar ninguém, mas demonstrando as minhas limitações para aceitar determinadas relidades, fiz o meu estágio de fim de curso na área em que me formei. Acompanhei de perto o jornalismo e as suas dores. Falamos de excelentes jornalistas quantas vezes arrastados pelo sensacionalismo e edições de informação muito pouco atrativas. Falamos de furos jornalistísticos e investigação, quantas vezes minados pela frustração  pelo facto do dia seguinte ser de muito pouca coerência e interesse. Há-o em todas as profissões, bem sei. Mas os jornalistas não deveriam ter de sair da sua linha reta para servir interesses obscuros de diretores ou proprietários que muitas vezes de jornalismo sabem muito pouco. Sem esquecer que o mais prejudicado sempre é o público-alvo das notícias. Que as recebe com fé nos homens e mulheres que as produzem. O sensacionalismo ocupava, muitas vezes, o lugar dos factos e a notícia ganhava outros valores. Aos poucos percebi que por mais profissionais, rigorosos, briosos e inteligentes, os jornalistas estavam enfiados num lugar muito poucas vezes desafiante e outras tantas constrangedor. Também sei que era o meu olhar enviesado e tendencioso a enacarar aquilo tudo. Definitivamente, não era o meu mundo.

Mas um dia (há sempre um dia!) descobri que era possível fazer jornalismo em prol do desenvolvimento local. Descobri um jornal que existia para dar escala a um território de Interior deprimido e às suas gentes silenciadas. Significa que o jornal em questão representava para muitos a única fonte de informação que se lhes colava à pele. Eram notícias que ainda lhes interessavam mais do que todas as nacionais e internacionais que passavam em loop na televisão. O Jornal servia, assim, para informar, mostrar e elevar a auto-estima da comunidade adormecida pelo cansaço do despovoamento e da desertificação. Aquele trabalho reativou em mim a esperança de um jornalismo ao serviço das pessoas. Fazer desenvolvimento local através da informação pareceu-me uma ideia brilhante e timoneira. Ajudar a dar escala a um território abandonado, mas preenchido pela sua história passada e potencial de futuro. Páginas-lugar de pessoas de verdade com a sua dimensão real e com o foco na sua rua. Meritório em toda a linha. O convite que me fizeram para integrar a redação mostrou-se irrecusável quando decidi folhear o jornal. Foi um trabalho tão intenso quanto gratificante. Estive 12 anos de corpo e alma neste jornal e na comunidade. Dentre esse tempo também houve espaço para tentativas de pressões – que se conseguia afastar com sucesso – e salários em atraso que se ultrapassavam com as economias de tempos melhores. O segredo para o «sucesso» daquele jornal era tão simples como evidente: colocar as pessoas no centro das notícias. E aos políticos dar o espaço quando assim se justificava. Ou seja, inverter uma tendência que existe no jornalismo regional e local que passa por sobredimensionar o espaço dos políticos (sobretudo os que estão no poder) nas páginas dos jornais. O mais importante para nós era devolver o sentimento de comunidade ao lugar [pouco] habitado e contribuir para a elevação da auto-estima do território, evidenciando o seu potencial.

Era um jornal de uma ADL [Associação de Desenvolvimento Local] que soube ao longo de 12 anos lidar com o facto de ter um órgão de comunicação social, dando espaço a uma direção e redação própria e independente. Por isso conseguíamos dar voz à comunidade, ter equilíbrio de forças político-partidárias e elevar o sentimento de jornalismo de verdade. Até que um dia o jornal é tomado por uma nova direção cujo conhecimento de jornalismo se mostrava nulo e a quem interessava apenas o poder político. Correu mal, muito mal. À primeira pressão foi impossível escapar [tal era o nível de vampirização] e não tive alternativa senão negar fazer serviços completamente tendenciosos e avessos à ética e deontologia. Despedi-me e fui para a justiça. Não consegui [incrivelmente] provar nada. Saí do processo com o sentimento de impotência perante determinadas impunidades. Contudo, voltaria a fazer tudo de novo se me visse na mesma circunstância. Não se pode ceder nunca no jornalismo. Custe o que custar. Tal como se tem visto nos últimos tempos, esta não é uma profissão qualquer.

Muito pouco tempo depois de sair daquele jornal fui convidada por dois diretores de diferentes jornais no Algarve para integrar a sua equipa. Não aceitei porque já tinha outros planos e que só podiam passar por me afastar daquele círculo vicioso. A um dos diretores [porque conhecia bem a sua ligação promíscua com os políticos] só lhe disse que caso lhe pudesse dar um conselho era o de que usasse o seu quarto poder ao invés de servir o sistema político-partidário e o caciquismo. Confio que se usarmos o portento do jornalismo estaremos sempre a salvo. Construímos massa crítica e somos pessoas mais felizes. Ceder ao quê? Se detemos um título temos nas mãos o maior poder de todos porque o que vale são os factos. As notícias verdadeiras. As páginas dos jornais.

Quantos e quantas jornalistas eu conheci que no meu lugar [noutros órgãos de comunicação social] anuíram num momento de pressão? E que a partir dali anuir passou a ser cada vez mais uma norma para eles e elas? Argumentos que justificam as pressões vêm de todos os lados: dos trabalhadores porque é preciso pagar as contas ao final do mês, dos diretores porque precisam ter o negócio a funcionar [custe o que custar] e para os políticos que apenas usam a comunicação social e o jornalismo porque precisam esfumar a sombra da malvada oposição para se conseguirem perpetuar no poder. Há razões para todos os gostos e feitios.

Com o caso da Global Media, a descredibilização a que muitos políticos e empresários têm subjugado o jornalismo é agora muito mais evidente. Os verdadeiros jornalistas e os cidadãos ativos estão dedicados a pensar sobre o tema e as soluções possíveis para tornar o jornalismo em portugal uma profissão saudável como tem de ser, a par da política e da justiça. Com toda a crise gerada, os trabalhadores da Global Media mostraram o seu poder e trazem à tona de água muitos afogamentos do jornalismo e, consequentemente, da democracia. Não são as redes sociais que substituem o jornalismo e todos temos de entender isso. A liberdade de imprensa tem o mesmo valor que a liberdade da justiça. Um país que não assegura as suas liberdades está a morrer na sua democracia. É suicidário. Ou por outra, é um homicídio qualificado que nos querem fazer acreditar que é suicídio. E não se trata de teorias da conspiração, não…

Eu já passei pela experiência de servir um órgão de jornalismo ligado à administração pública. É possível ver o jornalismo apoiados por todos nós, seja em que modelo for. Acredito, pois, no apoio público cego, basta que a cegueira parta da classe jornalística. E o jogo de cintura dura até nos quererem mudar o tango. Se for o caso, recusamos e abandonamos o salão. Ninguém dança sem par nessas condições, nem mesmo os empresários e políticos mais malabaristas. Para além do financiamento é também preciso pensar na formação do jornalismo em Portugal. É um serviço público que não nos deve mover por ambições de estatuto ou de fama. Cabe à regulação estar atenta a todos os desvios na atividade. E quem melhor do que os jornalistas para os denunciarem!? Vai decorrer em breve o 5.º Congresso dos Jornalistas e acredito que com maior paixão do que nunca, e onde estas e inúmeras outras questões vão estar em discussão. Acompanhem aqui.

Da minha parte, estou sempre disponível para fazer jornalismo isento e factual, pois era com esse que eu sonhava acordada. Para já, utilizo toda a minha formação e experiência, bem como o enorme respeito e gosto pela palavra, para imaginar um território como a Eurorregião Alentejo, Algarve e Andaluzia com mais pessoas, mais potencial e menos muros. Não é fácil, mas a minha inocência [ou será resiliêcia!?] far-me-à acreditar sempre que é possível lançar semente. É a tal transformação e aprendizagem.

Susana Helena de Sousa: Autora «Muros: Imaginamos a Eurorregião Alentejo, Algarve e Andaluzia»

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