(PODCAST) Sofia e Laure são ativistas pelos direitos humanos das pessoas ciganas. Vera agradece esta «ponte aérea» sobre muros

Agosto 15, 2023
No nosso podcast pode ouvir duas entrevistas que realizámos sob o tema do ativismo pelos direitos humanos das pessoas ciganas. Tudo partiu de um contacto com a Sofia Aurora que fez a ponte com outras pessoas ativistas e com Vera, uma cigana que dá a voz e a cara pela sua comunidade e, sobretudo, pelas dores que representa ser-se pessoa cigana. Não podemos continuar a alimentar o preconceito e a xenofobia com o silêncio e o alheamento. No dia da nossa conversa, que aqui surge resumida em texto e na íntegra em dois áudios, tivemos ainda a oportunidade de visitar o Centro Comunitário da Horta da Areia, em Faro. Calhou no dia dos donativos do Banco Alimentar e a azáfama da equipa incansável daquele centro era visível, como não podia deixar de ser. À soleira da porta de madeira, em frente a salinas desativadas que hoje em dia são espaço de memória e de algum lixo que se vai acumulando, e onde muitas histórias de vida se cruzam, conseguimos entabular conversa com vários elementos daquela comunidade cigana e sentimo-nos em casa, prometendo lá voltar.

A Vera Santos é portuguesa e cigana pura, ou seja, filha de pai e mãe ciganos. O maior estigma, afirma, está-lhe na pele e no sangue, sendo que a vida tem sido um caminho sinuoso em alguns pontos que têm deixado marca. É mãe solteira de três crianças, tendo a Yasmine, a filha mais nova, problemas de saúde que ainda não estão totalmente diagnosticados. Andar «nos médicos» não é tarefa que lhe traga o conforto que desejaria. A sua menina é vista como alguém que integra a terceira pessoa do plural por parte de quem a atende em sede de consultório. A menina é o «vocês» que é como quem diz «vocês, ciganos». Para bom entendedor meia palavra basta, e a Vera sente-se desrespeitada nos seus direitos para qualquer lado que se vire. O eco da sua voz fica confinado às paredes da sua realidade, numa bolha onde desejaria não estar. Ao inlcuírem a sua filha num grupo a que se referem com agudo desdém é atribuirem-lhe um carimbo de ostracização que a remete para o outro lado do muro; e são muitos os muros que esta mãe de 40 anos tenta ultrapassar. Escutar Vera é como encontrar várias melodias num canto que alude à dor e ao amor. A dor tem um peso maior nas palavras porque não a afeta apenas a si, mas aos seus «mais que tudo», e dói, dói muito. Por isso, reclama maior atenção e consideração na hora dos vários atendimentos sociais pelos quais tem de passar, confessando que é muito frágil o sentimento de segurança quando tem de pedir ajuda aos serviços sociais do Estado.

Vera Santos é cigana, residente em Faro. Mãe solteira de três filhos, pede ao Estado português mais oportunidades do que apoios

Esta mulher portuguesa de origem cigana gostaria de ter mais oportunidades de trabalho e que por onde passasse deixasse de sentir desconfiança por parte de colegas. “Quantas vezes senti que por ser cigana era vigiada o tempo todo?! Muitas…”. Conta-nos que no seu currículo tem experiência de trabalho nas limpezas em hospitais e nas forças de segurança, tendo sido no Corpo de Intervenção da PSP que se sentiu respeitada e de onde ficou com saudades. “O trabalho não assusta”, tendo já feito jornadas de 12 horas por dia para levar um salário que em casa servisse para dar uma vida digna aos seus filhos e filha.  Agora está mais limitada fruto das necessidades especiais que a pequena Yasmine requer, mas quer muito ser encarada como uma cidadã que precisa de trabalhar para sobreviver; nada mais. Ao Estado português pede “mais oportunidades do que subsídios”.

A importância de ter conhecido ativistas pelos direitos humanos dos ciganos

O amor que, também, sente no processo individual por que passa Vera na sua condição enquanto membro de uma minoria vê-se nos olhos; são os que falam mais alto. Fala-nos em enorme gratidão que sente por a partir de certa altura da sua vida se ter cruzado com pessoas ativistas pelos direitos humanos da etnia cigana. Ativistas que se vieram revelar verdadeiras «pontes aéreas» sobre muros que não foram derrubados. São pontes e facilitação que marcam a diferença e que desbloqueiam muitas situações do quotidiano. É a estas pessoas que recorre amiúde e com quem sabe que pode contar quando se sente diminuída e descriminada. Ao falarmos com a Vera entendemos que a aceitação que sente no seio das pessoas ativistas transforma em apaziguamento e amor. Mostra-se conhecedora dos seus direitos e deveres e aos filhos garante que educa sobre a base da igualdade, apelando que frases como “se te portares mal vem o cigano e leva-te” saiam do património oral das casas das famílias não-ciganas. Frases como estas, carregadas de preconceito, em nada contribuem para a diminuição a perpetuação da xenofobia bem presente na nossa sociedade.

Ativistas: «As pessoas ciganas são invisibilizadas»

Sofia Aurora e Laure de Witte dão a cara por um ativismo que nem sempre é bem visto pelas suas esferas mais próximas. Defender as pessoas da etnia cigana chega a ser tema de conversa entre amigos e família, sendo que por vezes se transforma num debate aceso onde a desconstrução de estereótipos racistas e xenófobos não se mostra, como nunca é, tarefa simples. Mas é preciso fazê-lo até porque, segundo nos relatam, no concelho de Faro, que é a realidade que conhecem melhor, há muitos casos graves que envolvem pessoas de etnia cigana e que se não houver quem faça lobby por elas teremos a triste oportunidade de assistir crescer, em pleno século XXI, a várias realidade ultra dramáticas. “As ciganas e os ciganos são grupos invisibilizados”, garante Laure que nos conta que aos poucos vão surgindo pessoas ciganas que levantam a voz por toda a comunidade “o que se mostra muito positivo”. Garante que é, acima de tudo, ativista pelos direitos humanos, mas o caso das pessoas ciganas é “gritante e está no fim mais final da pirâmide das prioridades”. É solidária com a causa cigana e faz o que está ao seu alcance e tenta desmistificar ideias que “de científico não têm nada, pelo contrário são informações falsas sem qualquer fundamento”.

Por seu lado, Sofia é autora de uma dissertação de mestrado em que se dedicou a analisar o modo como o Rendimento Social de Inserção (RSI) é percecionado pelos atores sociais ciganos. Para isso realizou um estudo etnográfico que envolveu beneficiários e técnicos sociais do concelho de Faro e teve como duplo objetivo conhecer a experiência da atribuição do RSI e perceber como é vivida a situação de subsidiariedade junto dos beneficiários ciganos, bem como o modo como estes vivem o princípio da Solidariedade Social. Pretendeu-se também conhecer como é entendida a atribuição do subsídio por parte dos técnicos, bem como analisar as reais possibilidades de inserção e saída do universo da pobreza da população alvo. As pessoas ciganas não vivem condignamente com subsídios de trezentos e poucos euros, garante Sofia, testemunhando que há técnicos sociais que não podem ajudar mais por limitações legais, bem como há casos em que a visão preconceituosa no seio dos serviços públicos não permite fazer devidamente todo o trabalho, contribuindo para o fosso social. Há, por isso, muitos muros que a Sofia constatou por «A+B»; o que lhe deu a oportunidade de reforçar a convição de que os membros das comunidades ciganas precisam de ser ouvidos e atendidos nas suas necessidades para que a sua inserção social seja real.

Estas ativistas defendem que o Estado deveria promover uma discriminação positiva no mundo laboral em prol da desmistificação sobre a relação das pessoas ciganas, bem como partilham ideias de intervenção possíveis e já experimentadas com impacto positivo noutros lugares na Europa, nomeadamente [oiçam a entrevista no nosso podcast abaixo]. Estima-se que em Portugal residam 50 mil pessoas ciganas (embora quem conheça de perto os movimentos flutantes fale em mais de 100 mil pessoas…).

Sofia Aurora e Laure de Witte defendem os direitos humanos das pessoas ciganas e conhecem bem as dificuldades por que passam os seus membros em Faro

Nada do que a Sofia e Laure contam ou apelam nos pode soar a estranho [oiçam mesmo a entrevista!]. Só soará se não atentarmos aos dados da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia que no final de 2022 nos dizia que a taxa de risco de pobreza na comunidade cigana em Portugal atingiu 96% em 2021, enquanto a da população em geral era de 16%. Portugal é também dos países europeus em que a integração das pessoas ciganas no mundo laboral é das mais baixas.

Perante estes factos atuais e que traduzem uma descriminação e perseguição históricas em relação ao povo cigano não podemos ficar indiferentes, cabendo-nos querer saber mais sobre a sua história difícil de sobrevivência. Muitas já foram as investigações feitas e publicadas em vários formatos que nos permitem perceber que a comunidade cigana carrega em cima um estigma gigante que chega a ser irracional. Diria mesmo que é contar uma história do avesso e com muitos remendos, sendo que a história sobre a comunidade cigana que anda de boca em boca é um verdadeira manacial de desinformação que pode ser desmontado. Mas de nada servirá a informação credível se não nos despirmos do preconceito e aceitarmos emergir num mundo que não fica do outro lado, mas sim paredes-meias connosco.

 

 


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