(COM ÁUDIO) Carlos Brito: «Eu tenho um projecto: a [futura] ponte ligar ao IC 27, o IC27 ligar a Beja, de Beja até Sines e ligar à autoestrada do Sul, e daí ligar a Lisboa e ao resto do país»

Dezembro 16, 2022

Carlos Brito diz-nos que o vazio é um muro que pode erguer-se de um momento para o outro. Assim aconteceu durante a pandemia; que apesar de ainda estar em vigor enquadra-se agora num ritmo de vida mais próximo daquilo a que estávamos habituados antes de 2020. Recupero esta entrevista para dar mote às entrevistas que se seguirão. Esta é especial porque foi concebida no âmbito de um projeto de arte preocupado sempre com a cultura. A revista Esfera, da Associação Figo Lampo com as fotografias analógicas de Eduardo Pinto. Depois, porque se trata de uma entrevista subordinada ao tema do Vazio a uma figura ímpar da nossa história contemporânea que muito nos pode contar sobre a sensação de esvaziamento total. Carlos Brito foi preso político, torturado e clandestino inúmeras vezes. Ser humano exemplar, preocupado com as causas públicas, foi também um dos fundadores de um jornal no nordeste algarvio e baixo Guadiana; jornal esse que viria a ser a também a minha casa durante 12 anos. As causas eram mais que muitas. Combater o despovoamento do Interior era uma delas. Como? Apelando à discriminação positiva por parte dos Governos, valorizando as potencialidades e contando a verdade sobre o envelhecimento desse Interior tão deprimido em plena União Europeia. Entre mim e o senhor Carlos Brito seja qual for o tópico da entrevista, conversa ou artigo o tema da Interioridade e suas consequências vem sempre a talho de foice. Nesta entrevista vai poder ler sobre a ideia que Carlos Brito tem para dar mais centralidade a uma zona que une Algarve e Alentejo e que muitos teimam em dizer que «está lá longe»… Ora leiam:

Fotografias: Eduardo Pinto

Falar de vazio em tempo de pandemia parece-lhe adequado?

Tenho alguma reflexão sobre a questão do vazio. Acho que o vazio é um irmão gémeo da solidão. A solidão é a falta de companhia ou de não se saber aproveitar a companhia que se tem. O vazio é a falta de ocupação e, ainda mais, a perspectiva de não voltar a ter ocupação. No caso dos presos políticos a crueldade do regime de Salazar levou ao ponto de procurar transformar a solidão – que é estar na prisão – em vazio – que era não ter perspectiva. A grande perspectiva do preso político era fixar-se no dia em que iria ser libertado. Então aí organizava muitos sonhos e muitos projectos à volta disso. Ora, eles arranjaram uma legislação chamada «Medidas de Segurança» em que acabavam com esse ponto no futuro que permitia toda essa construção de projetos.

Eles faziam questão de cimentar um vazio…

Exactamente, o objectivo era esse. O vazio era uma forma terrível de provocar a solidão e de provocar o desânimo, a desistência. Eles trabalhavam todas essas formas de reprimir, de abater a personalidade dos presos. Neste caso concreto com as medidas de segurança acabavam por riscar do horizonte dos presos esses momentos dos grandes projectos. Como? Faziam os falsos tribunais, chamados «Plenários»: os presos eram condenados a um determinado número de anos de prisão – no meu caso a quatro anos – e a medidas de segurança prorrogáveis de três meses a três anos, e prorrogáveis depois… Portanto,não se sabia nunca quando chegava o dia da libertação, pois podiam prorrogar as medidas por mais um outro período. Acabavam com esse ponto mágico no horizonte do preso.

E como é que o preso político Carlos Brito lia dentro de um vazio, contrariando-o e criando perspectiva de futuro?

A receita que tenho e recomendo a todos é preencher o vazio para acabar com a solidão. No período em que estive isolado em celas disciplinares – ou nos chamados curros, que eram as celas do Aljube – onde os presos eram mantidos durante os períodos dos interrogatórios e onde nos tiravam tudo, ficava-se sem nada. Tiravam o cinto e os cordões dos sapatos: não ficávamos com nada que se pudesse transformar em ocupação. Salvo o miolo de pão. Houve presos que fizeram bonecos com o miolo do pão ou tentavam fazer pessoas, ou até peças de xadrez, que foi o meu caso. Inventei uma outra forma de ocupar os meus momentos de vazio com os recitais de poesia. Eu sempre soube muitos poemas de cor, ainda hoje com um bocadinho de esforço vêm à memória. Desde cancioneiros, passando por Camões e por aí fora. Nessa altura não tinha acesso a livros. Ao segundo recital a porta da cela abre-se rapidamente; o guarda quase que me cai no colo, dizendo: «dê cá isso aí, dê cá isso aí!». Eu percebi que ele pensava que eu tinha um rádio e que estava a transmitir para fora! (risos)

Uma emissão clandestina!

Eu disse-lhe que não tinha, que tinha as mãos vazias e que estava a recitar poesia e ele disse-me: «pode, mas mais baixo». Então aí ganhei essa liberdade, fazendo recitais, ocupando o vazio. Tentei depois passar para o canto e fiz uma primeira sessão de canto! E ainda não tinha acabado a sessão já o guarda tinha entrado pela cela a dizer: «Não pode cantar». Pronto… (risos)

Já era demais!

Já era demais! E pronto, aí está uma forma de ocupar o vazio. Outra, não tendo nem lápis nem papel, é escrevendo na memória poemas, frases ou cartas à namorada!

E as cartas chegavam!?

Eram na nossa memória!

Mas chegaram depois?

Chegaram depois. «Olha vê tu que pensei isto assim, assim, assim, uma carta para ti e tal, tal…!»

Carlos Brito fala-nos da necessidade de preencher o vazio para que ele não se transforme em solidão

Estava a falar da crueldade, da resistência, da resiliência e da coragem. Num tempo de pandemia há um grande vazio de perspectiva. Mas também há um caminho que está a ser desenhado nos mapas políticos que nos mostram uma tendência perigosa para aquilo que é o populismo, aquilo que é a extrema-direita, nomeadamente. Faz-me parecer, e depois do que me contou e que nos chega com uma memória tão lúcida e tão sensitiva, que nós já nos esquecemos desse vazio que impunham na ditadura e a crueldade com que o configuravam. Há um vazio de memória?

Há, há… Eu creio que é próprio da nossa memória; muitas vezes resistir a coisas que são incómodas. E estas histórias são incómodas, além de que não estão muito divulgadas. Eu dei há dias uma entrevista a uma equipa de jornalistas muito jovem e eles diziam que não conheciam nada desta parte da história, a parte das celas de interrogatório. Não foi suficiente a recordação que se produziu sobre o tempo da ditadura. Ou seja, a população mais jovem não guardou uma memória mais precisa do que foram os tempos de ditadura. Eu creio que é importante avivar essa memória agora que há vários indícios que estaremos perante uma tentativa de ressurgimento dessas práticas políticas que existiram no nosso país por mais de 50 anos, e devemos avaliar o que isso significa de sacrifício e opressão da população.
Mas, ainda voltando ao vazio e à solidão, falámos da situação especial dos presos políticos, mas é preciso dizer que na vida corrente, de todos os dias, com as pessoas de todos os dias, as mais comuns, também passam por estas situações: de ter solidão, embora estando acompanhadas, e de serem tomadas pelo vazio, embora tendo ocupação; que não as preenche, que não as realiza. As pessoas acabam por cair nestas situações. A resposta é preencher pelo vazio.

Não é por acaso, e fazendo ligação ao que disse, que estão diagnosticados tantos casos de depressão. A depressão é um dos grandes problemas da saúde mental nos dias de hoje. Revela um grande vazio de perspectiva, de emoção, de capacidade de resposta ao dia a dia, de incapacidade para a alegria e para sentir na pele aquilo que acontece no quotidiano. Parece que há de facto aqui um vazio. Há um vazio em várias esferas da vida.

A arte; a literatura, o cinema… são grandes respostas ao vazio e à solidão. Sabendo valorizá-los, são das formas mais eficazes para combater o vazio, a solidão e, logo, a depressão.

Já nos deu aqui várias receitas para podermos todos nós combater o vazio. Na sua opinião, o vazio é um espaço de desespero ou de oportunidade?

(Pensa um pouco) As duas coisas. Digamos que quando se não sabe preencher o vazio é de desespero, quando se sabe é de oportunidade! E quantos escritores e artistas não arrancaram para a construção de uma obra valiosa, partindo de períodos de grandes dificuldades com a solidão e com o vazio até encontrarem esse caminho, essa saída que os projecta para as alturas!

 

A nossa entrevista decorreu na Casa dos Condes, a atual biblioteca municipal de Alcoutim. Um local que Carlos Brito frequenta e de onde tem inúmeras memórias de outros tempos também.

O senhor como é que olha para este vazio de pessoas, para esta necessidade de colocar as pessoas dentro de casa, de privá-las de uma vida até aqui dita normal [confinamento em tempo de pandemia]?

É um dos lados muito preocupantes desta situação. Comporta grandes problemas para a economia, é um factor de desemprego, de dificuldades, de fome, de miséria para largos sectores da população. Mas também é preocupante em relação à alma humana. E isto não é nada para brincar, sobretudo quando os meses vão passando e não se vê saída. A população portuguesa reagiu muito sabiamente na primeira fase, acompanhou as orientações das entidades da saúde, recebeu bem as mensagens das autoridades. Creio que neste momento há um certo cansaço. Começa a haver a convicção que «isto não resulta, a gente está a fazer tudo e isto não dá». Parece que estamos na situação dos náufragos.

E como olha para um Governo que se sente legitimado para impor tais restrições à população mesmo antes de haver um Estado de Emergência ou de Calamidade? Como é que isso se tornou possível?

Isto é muitíssimo complicado. Não é só o nosso Governo que está a ter dificuldade em encontrar as medidas acertadas. Vimos pela Europa e pelo mundo as medidas dos vários Governos que são semelhantes, e porquê?! Porque não encontram outras. Isto é muito complexo, isto é muito difícil. Eu olho com muita modéstia para a acção governativa diante deste fenómeno. E vê-se que quase todos [os Governos europeus] saem com o mesmo tipo de medidas, de soluções – que não são soluções como se vai vendo… São medidas duras e quanto mais o tempo passa vão ficando mais duras. Mas questiono quais serias as outras… Acho engraçado aparecerem aqueles opinantes na televisão que dizem que se devia fazer assim, ou assado, mas eu gostava de os ver lá. Naturalmente que a crítica é legítima e é uma forma de melhorarmos a resposta, mas às vezes há para quem pareça que é tudo facilidades. Creio que também não dão nada aquelas medidas piedosas, aquelas construções retóricas: «o novo normal». Trata-se de uma maneira de atenuar como estamos a viver, como se fosse possível viver assim. Tem que haver outra saída e por isso eu digo que há encarar isto como verdade e assumirmo-nos como náufragos. Estamos todos numa ilha deserta onde todos temos de nadar ou aprender a nadar. Isto só vai com todos. Enquanto não aparece uma vacina com eficácia.

E parece que já há melhores perspectivas em relação à vacina…

Espero que não se exagere com a perspectiva senão pode haver depois uma queda no desespero, e ainda mais profunda.

Sublinhou sempre como uma das grandes vitórias de Abril a criação do Sistema Nacional de Saúde. Mas perante esta pandemia fica a nu o esvaziamento do mesmo!?

O Serviço Nacional de Saúde [SNS] foi enfraquecido ao longo dos anos e quando surgiu a pandemia ainda não tinha recuperado e até tinha visto agravar muito dos problemas com que se debate. A pandemia e, sobretudo, a resposta do SNS na primeira fase veio dar a compreender o quanto ele era importante para a população portuguesa e veio mostrar, ao mesmo tempo, onde estavam as suas maiores fragilidades. Não houve tempo nem condições para recuperar essas fragilidades, mas ainda assim o SNS está a responder e a aguentar; o que nos mostra como seria sem ele… Mas sem dúvida que precisa de ser robustecido, de ser melhor organizado, precisa que se coloque em prática a Lei do SNS que foi aprovada ainda na anterior legislativa. Tudo isso tem que ser feito, e compreendo as críticas; que devem ser interpretadas pelo poder como incentivo às devidas medidas e na devida proporção.

Eduardo Pinto fez uma sessão fotográfica analógica a Carlos Brito num trabalho publicado na revista Esfera N.º11

Lá está: um vazio que pode ser uma oportunidade para repensar o que existe.

Claro, tanto mais que esta pandemia é um aviso. Podem haver outras, outros vírus e temos de estar preparados para isso. Há que reforçar o Serviço Nacional de Saúde mesmo que as vacinas venham aí. Há que reforçar para o futuro.

Como é que está a preencher este vazio? Sei que a sua atividade diária intelectual se mantém [está a escrever um novo romance].

Sim vou escrevendo, estando atento, lendo, ouvindo músicas. Disse-lhe sempre que os meus sete anos de prisão deixaram uma sequela; eu acho que fui um bocadinho mutilado pela falta de música! Tornou-se uma sede que ainda não satisfiz… Na primeira vaga da pandemia quando ficámos mesmo fechados em casa aproveitei para ouvir todas as sinfonias. Eu tenho essa ansiedade de música porque aqueles anos foram terríveis nesse aspecto. Quando saí estive em casa de uma prima minha e ela pôs-me a ouvir os Beatles e eu fiquei maravilhado! Achei que era qualquer coisa de deslumbrante para um pobre preso que não ouvia música há sete anos! Quando me preparo para entrevistas sobre ideias – um debate ideológico em que tem de haver um espírito de síntese muito grande – preparo-me só a ouvir música. Não faço mais nada; para descansar o espírito! (risos)

De combatente antifascista a deputado na Assembleia da República veio sendo sempre um cidadão extremamente ativo com as suas ideias e convicções. Regressou a Alcoutim e combateu este vazio dos territórios de baixa densidade sempre muito crítico ao abandono. Como é que olha para o vazio de hoje?

Não está resolvido o problema do abandono. Os autarcas têm feito imenso, a União Europeia foi importante. Como sabe eu tenho a opinião que no Algarve soube-se aproveitar bem os fundos comunitários, nomeadamente, para o saneamento básico. Isto antes era um autêntico sertão…

Mas há um vazio de pessoas?

Alcoutim não tem nada a ver com o que era antes do 25 de Abril. As pessoas consideram um oásis e eu considero um oásis da tranquilidade! Mas está muito vazio. Agora já foi anunciada com os programas de cooperação transfronteiriça a nova ponte Alcoutim Sanlúcar…

Será que é desta?

Pois, é o que a gente pergunta: «Será que é desta!?». Sabe que eu me tenho empenhado muito nessa causa…

Essa seria uma grande mudança.

Não só para a terra como para todo esta zona de nordeste algarvio e para os campos brancos alentejanos. Eu tenho um projecto: a [futura] ponte ligar ao IC 27, o IC27 ligar a Beja, de Beja até Sines e ligar à autoestrada do Sul, e daí ligar a Lisboa e ao resto do país. Seria uma alternativa mais modesta à Estrada Lisboa-Sevilha. Vias rápidas e não com estatuto de autoestrada, mas que desempenhavam um papel muito importante para os automobilistas.
Eu tenho um amigo empresário algarvio a quem questiono quando investirá na zona industrial de Alcoutim que tem terrenos muito baratos, ao que ele me responde que investirá quando eu lhe pagar a diferença entre as quatro estradas de Alcoutim e a EN125!

A eterna questão da mobilidade no Algarve… Para terminar, sr. Carlos Brito: a palavra Vazio faz-me lembrar a palavra Salto, que me faz lembrar o Contrabando Tradicional do Baixo Guadiana e que, por sua vez, lembra-me a palavra Sobrevivência. Faz-lhe sentido todo este percurso?

Sim, está tudo muito bem! O contrabando foi uma forma de preencher o vazio, sobretudo em termos da economia e subsistência de uma parte grande da população, e preenchendo o vazio acabou por ser uma das formas da sobrevivência, sobretudo, depois do encerramento da fronteira [Portugal estava sob a ditadura de Salazar e as fronteiras estavam encerradas]. Alcoutim vivia muito da relação comercial com Espanha e como ponto de encontro entre Alentejo, Algarve e Espanha. Quando a fronteira fechou Alcoutim veio por aí abaixo e quase que desapareceu. O contrabando tradicional foi, então, uma forma de sobrevivência.

E hoje é motivo de arte e de encontro em Alcoutim!

Encontrou-se essa saída muito interessante com o Festival do Contrabando que atrai muita gente a Alcoutim e que dá base para outras saídas – hoje em que não é preciso haver contrabando! São motivos para o desenvolvimento económico e cultural de Alcoutim.

(Entrevista realizada em 2020. Publicada em parte na Revista de arte #estera 11). 

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