“Os ciganos deixaram de ser perseguidos para passarem a ser discriminados”

Abril 10, 2024
Prudêncio Canhoto, presidente da Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMCP) traduziu o sentimento da comunidade cigana, nomeadamente, a que conhece melhor e que se insere em Beja, no Baixo Alentejo. Afiança que “os ciganos deixaram de ser perseguidos para passarem a ser discriminados”, queixando-se que os ciganos são sempre os últimos da lista a quem é dado trabalho, sendo preteridos “mesmo pelos que acabam de chegar e que nem sequer ficam nos territórios”. Reivindicam humanidade por parte dos poderes e reclamam ser vítimas de um estigma de ostracização que “tem piorado nos últimos anos e que com partidos de extrema-direita com força na política em Portugal ainda vai piorar mais”. Sem “espaços sequer nos campos para trabalhar” as comunidades ciganas nas regiões de Interior passam por “grandes dificuldades”. Declarações proferidas no webinar «Os desafios nas comunidades ciganas no Alentejo, Algarve e Andaluzia», que teve lugar este dia 9 de Abril no âmbito da «Semana da Interculturalidade» promovida pela Rede Europeia Anti-Pobreza [EAPN] Portugal. 

A manhã deste dia 9 de Abril foi muito produtiva no território da Eurorregião Alentejo, Algarve e Andaluzia. Entidades, ativistas e voluntários portugueses e espanhóis juntaram-se num repto da Rede Europeia Anti-Pobreza, núcleos de Faro e Beja, para discutirem qual a situação da comunidade cigana nesta eurorregião. Um tema tantas vezes lateralizado, mas que na Semana da Interculturalidade ganhou um lugar central de reflexão. Aliás, foi mais do que uma reflexão na medida em que fruto deste encontro online saiu a garantia de que vai surgir uma pressão muito maior para influenciar políticas públicas em prol da causa cigana.

Numa altura em que os dados nos contam que o racismo e os discursos de ódio estão a aumentar tanto em Portugal como em Espanha, é preciso “legislar para punir quem comete esses atos, nomeadamente utilizando as redes sociais”. As declarações foram dadas por Rosel, do «Instituto Romanò para Asuntos Sociales y Culturales». Se dúvidas houvesse, neste webinar houve testemunhos de pessoas ciganas que na primeira pessoa demonstraram a discriminação de que são alvo. José Reis Amorim, jovem cigano, que integra a Fábrica do Empreendedor de Oeiras, esteve no webinar e contou que ao fim de dois anos num local de trabalho onde estava a correr “tudo muito bem” foi só “saberem que era cigano para despedirem, alegando justa causa por antes terem tido problemas com ciganos…”. Os limites são ultrapassados, como demonstram este caso, mas também o são quando vamos encontrando, nomeadamente do lado português da eurorregião, inúmeras situações de degradação em que os bairros amontoam pessoas ciganas vítimas das maiores carências como uma casa digna, água, luz e onde a fome entrará amiúde.

“Em Faro existem cerca de 25 pontos de comunidades ciganas, muitos sem quaisquer condições”, conta David Fernandes, técnico de Intervenção Social há quase 30 anos no Centro Comunitário da Horta da Areia. Não considera que a situação esteja pior do que há 10 anos, mas houve “uma estagnação” fruto dos projetos de intervenção, “tais como o Escolhas e os CLDS [Centros Locais de Desenvolvimento Social] terem durações limitadas, apesar de criarem expectativas que depois não têm o tempo necessário para cumprir”. O responsável advoga que é necessário criar mais “relações de proximidade e de confiança com as pessoas para uma intervenção mais efetiva e eficaz”.

No bairro onde intervém os pré-fabricados têm 40 anos e todos os dias são de luta para melhorar a dignidade daquelas pessoas. O trabalho que é feito para o empoderamento da mulher é disso exemplo paradigmático. “São mulheres, são ciganas, e precisam de um acompanhamento muito próximo para ganharem auto-estima e confiança”. Para isso foi determinante um projeto artístico levado a cabo no bairro e que só com um apoio financeiro à medida se mostrou possível. Misturou artes e misturou mulheres ciganas e não ciganas. O resultado foi bom e merece ser um projeto para continuar. Ângela Cangola, Odete Silva e Sara Cruz deram o seu testemunho no webinar e falaram muito na força que ganharam para enfrentar a realidade que também ela é plena de diversidade. Conheçam o projeto artístico levado pelo CAPA [Centro de Artes Performativas do Algarve] no Bairro da Horta da Areia aqui.

“É preciso quebrar barreiras arquitetónicas e de mobilidade das pessoas ciganas”, alertou Rosel que explicou que, a Andaluzia, nomeadamente, em Espanha, encontra-se numa fase em que é necessário apostar na educação para que haja uma real inclusão daquela etnia. Em Espanha “temos muitos colégios-gueto, forte segregação escolar”. Rosel contextualiza que ao ensino secundario na Andaluzia só chegam 60% dos ciganos que estudam. Desses apenas 2 de cada 10 terminam o secundário”. Ao contrário de Portugal, do outro lado da fronteira a habitação já está mais avançada e desenvolvida, contribuindo no processo de inclusão das comunidades cigana, adianta a responsável daquele instituto na Andaluzia, Espanha.

Do lado português, Anselmo Prudêncio lembra que “ainda estamos atrasados, pois sem habitação não há inclusão que seja possível”. Este membro da EAPN em Beja não tem duvidas em afirmar que “muito há para fazer neste direito básico” que assiste a todas as pessoas, sem exceção. Uma ideia que foi acompanhada pelo núcleo de Faro, representado por Dionísia Pedro.

«As crianças ciganas na escola são ameaçadas com o RSI»

“De Inverno as crianças vão para a escola todas sujas, cheias de lama”. Conta Prudêncio Canhoto que aponta o dedo aos sucessivos Governos nacionais que promovem “a formação e gastam o dinheiro só para os ciganos estarem quietinhos”. Afirma que ele próprio há mais de 15 anos na área social que tem incentivado as pessoas ciganas a estudar, mas “depois o que se vê é que não arranjam trabalho, porque ninguém lhes dá”. Este técnico testemunha que “a comunidade cigana só tem trabalho nos grandes centros, pois nos meios pequenos, rurais e de interior é muito difícil ver ciganos a trabalhar”. E o trabalho é importante “não só para ganhar dinheiro, mas também para haver regras, horários, diálogo e inclusão”, observa. Indignado contra o que considera ser uma “falta de acompanhamento das técnicas sociais”, reivindica políticas novas de inclusão e um papel da Eurorregião AAA “de união para se trabalhar as dificuldades comuns [no Alentejo, Algarve e Andaluzia]. “As crianças ciganas que estão na escola não são motivadas a estudar, são sim ameaçadas que se não estudarem cortam-lhes o RSI [Rendimento Social de Inserção]. Ora que motivação é esta?…”, denuncia este mediador cigano, que conta que “muitos dos ciganos que têm o 12.º ano não sabem ler nem escrever como deve de ser”, pois “ninguém se interessa se estão a aprender ou não, querem é que façam as formações, andem à escola e nada mais”, critica.

É de referir que o repto lançado por Prudêncio Canhoto foi aceite por todos os participantes do webinar e que faz supor que em breve surgirão novidades a partir da sociedade civil e setor social na Eurorregião AAA em prol da melhoria das condições de vida das comunidades ciganas.


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