«É preciso construir a memória do quotidiano das gentes raianas»

Abril 19, 2023

O antropólogo social espanhol Rafael Cáceres Feria fala sobre a raia com uma enorme paixão. Tem levado a cabo diversa investigação sobre a área fronteiriça da Eurorregião AAA, nomeadamente, no Alentejo, numa parte do Algarve e na serra de Huelva – já em Espanha, na Andaluzia.  A sua percepção é guiada pelas técnicas investigativas, mas também por um conhecimento profundo do território onde nasceu;  o que permite uma abrangência na reflexão e uma sensibilidade acrescida no terreno.

O investigador Social, Rafael Cáceres Feria, em entrevista ao Muros. A entrevista também pode ser ouvida no Spotify no nosso canal de podcast

Tal como nos conta, a temática «fronteira« foi sendo sempre para si “algo quotidiano”, contudo aprofundou-se na mesma por via académica, abrindo-se para os vários planos que é preciso ter em conta para entender a sua complexidade. “Não é por se viver na zona de fronteira que se conhece todas as suas dimensões”, constata. Ser fronteiriço é diferenciador porque “não é o mesmo ser um português em Castro Marim ou espanhol em Ayamonte do que ser um português em Lisboa ou espanhol em Sevilha”. O antropólogo refere-se “à importância da proximidade e quotidianidade” nas zonas de fronteira.

Rafael C. Feria conhece bem a ambivalência que norteou sempre as relações entre os portugueses e os espanhóis da raia. Entende os preconceitos bem como os fatores de ligação e valorização entre as gentes. “Muitos dos fenómenos raianos que surpreenderam os meus colegas investigadores para mim soaram-me a naturais, porque os conhecia desde sempre”. O investigador salienta que estas percepções várias não se obtêm através do funcionamento das estruturas dos Estados, mas sim  através da vivência do quotidiano das gentes, sendo essa diferença determinante nas relações que se estabelecem na raia. Admite que “as relações entre os Estados marcam as diretrizes, contudo não determinam as relações interpessoais na fronteira”, pois tal como sempre aconteceu “acima dessas relações estão as necessidades dos habitantes e as relações familiares e de proximidade que se geram naturalmente seja em que época for”.

«No tempo da guerra civil em Espanha, por exemplo, os portugueses acolhiam os espanhóis em suas casas e no tempo da guerra colonial eram os portugueses a encontrarem refúgio do lado espanhol»

O antropólogo andaluz reporta-nos a eventos na história que servem para demonstrar que o plano da relação entre os cidadãos é muito diferente, podendo ser oposto, daquele que é o plano institucional. São realidades que se tocam, mas não é garantido que se misturem. “No tempo da guerra civil em Espanha, por exemplo, os portugueses acolhiam os espanhóis em suas casas e no tempo da guerra colonial eram os portugueses a encontrarem refúgio do lado espanhol”. São exemplos que evidenciam bem que as relações que se estabelecem no plano de cidadania nem sempre são as mesmas que se desenvolvem a outros níveis. “O olhar institucional é importante para os apoios, normas e leis, bem como para vertebrar o território, mas não é suficiente por si só, na medida em que apenas está a gerar laços institucionais. Se o objetivo é construir uma eurorregião há que ir mais além e chegar às pessoas”, defende.

«Agora, com a Eurorregião está a desenvolver-se o processo contrário em que as instituições querem diluir a fronteira, a raia, o limite, mas há uma grande dificuldade em criar relações pessoais»

Numa retrospetiva histórica é visível que as relações nas fronteiras entre os dois países foram sempre conflituosas. Rafael C. Feria acrescenta que “o conflito também foi responsável por relações de cooperação”, concretizando que em si mesmo “o conflito é uma relação”. E sublinha que durante muitos anos a fronteira gerou inúmeras relações pessoais” que se construíram de forma espontânea e sólida. Durante séculos “os Estados empenharam-se para que a fronteira entre Espanha e Portugal fosse constituída por muros, contudo a necessidade das pessoas e as relações desenvolvidas criaram laços que ultrapassaram sempre esses muros. “Agora, com a Eurorregião está a desenvolver-se o processo contrário em que as instituições querem diluir a fronteira, a raia, o limite, mas há uma grande dificuldade em criar relações pessoais”. O antropólogo está convicto que a eurorregião precisa de ser um terreno fértil para que surjam da sociedade civil movimentos que reforcem os laços entre os cidadãos portugueses e espanhóis. Ao longo da sua investigação questionou-se inúmeras vezes como foi possível criarem-se laços pessoais quando não se podia passar legalmente e os Estados estavam empenhados em separar os dois lados do Guadiana. A resposta residiu sempre no poder da necessidade das pessoas que ocupavam a raia, bem como em fenómenos que agora se caracterizam como muito marginais ou outros muito pontuais. Fenómenos esses que deixaram raízes. “A tradicional atuação de uma banda filarmónica portuguesa na Semana Santa em Ayamonte e noutras terras da serra de Huelva, em que os músicos portugueses ficavam hospedados nas casas dos espanhóis, é uma imagem que tenho muito presente. Mas também sabemos das relações que se criaram através do contrabando e as que viveram dos serviços de saúde pela importância do médico em Alcoutim, por exemplo”. Este antropólogo fala-nos de um laço que está acima da fronteira “e que não é de agora com a Eurorregião, é de sempre, e que também não foi criado pelo Estado nem pelas instituições”.

«A comunicação entre a esfera do poder e os cidadãos é um processo que está interrompido, o que explica porque muitos dos habitantes não têm qualquer noção de que estão inseridos numa Eurorregião, nem tão pouco numa Eurocidade…»

Quanto ao sentimento de ser raiano, Rafael Cáceres Feria diz-nos que antes não havia sentimento, mas sim relações entre os raianos. O investigador confirma que “começa agora a surgir esse sentimento, sendo, no entanto, ainda muito frágil”. A identidade territorial é algo que se constrói desde âmbitos muito diferentes. “Desde o poder porque é através do poder que se consegue levar mais além o sentimento territorial com as políticas a implementar. É o que está a ser proporcionado com a União Europeia,  Eurorregião e Eurocidade. Contudo, não é suficiente porque para que a identidade seja, efetivamente criada, as pessoas têm de a querer, têm de a interiorizar e isso é o que falta agora fazer”. E considera que “a comunicação entre a esfera do poder e os cidadãos é um processo que está interrompido, o que explica porque muitos dos habitantes não têm qualquer noção de que estão inseridos numa Eurorregião, nem tão pouco numa Eurocidade…”.

Para o antropólogo não restam dúvidas que “as pessoas deveriam ter espaço para contar a sua memória da fronteira porque o que existe a esse nível remonta às rivalidades entre os dois Estados”. Lamenta que não seja construída a memória da quotidianidade e das gentes, acrescentando que “é interessante verificar que a época em que havia fronteira e separação dos povos é um passado muito recente, mas parece que já foi há muito mais tempo, pois a memória é muito frágil e o que não se fala esquece-se”. O investigador. Rafael C. Feria vai mais longe e sugere que seria importante criar um conceito de memória que fosse aplicado, inclusivamente, na promoção da Eurorregião AAA enquanto espaço que reúne identidade de dois países e três regiões. “Não se trata de abdicar da identidade nacional de cada país mas sim pensar naquela que é também a identidade partilhada que torna este num lugar único e tão amplo e diversificado”, defende.

Oiça a entrevista na íntegra:


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