Assuntos Europeus e uma «última lição» de António Covas a que devemos recorrer amiúde

Janeiro 16, 2022

António Covas deu a sua última aula [oficial] em 2019, a 18 de Dezembro, no Auditório da Faculdade de Economia da Universidade do Algarve. Toda uma lição que não se perde no tempo, pelo contrário, ganha espaço de reflexão para nos recentrarmos na discussão do projeto europeu. A esta última lição podemos e devemos recorrer para nos elucidarmos e preparamos para os próximos anos. Na altura, o momento foi, acima de tudo, uma homenagem onde o homenageado fez as honras da casa e ofereceu mais um bom momento de reflexão perante colegas, alunos, amigos, familiares, instituições, nomeadamente o Centro Europe Direct do Algarve, e amantes dos temas recorrentemente abordados pelo professor Covas, nomeadamente a União Europeia. Da parte da UAlg contou na mesa com o vice-reitor, bem como o diretor da Faculdade de Economia (FE), assim como o presidente do Conselho Científico da FE e João Guerreiro, antigo reitor da UAlg que estabeleceu contacto com António Covas ainda nos tempos de estudos e ensino de Évora. António Covas foi estagiar no seu doutoramento para a União Europeia (então Comunidade Económica Europeia) em 1983 numa altura em que se preparava a adesão de Portugal à UE (o país aderiu em 86). Desde essa altura diz ter ficado marcado pelas questões europeias, nomeadamente o mundo rural, a agricultura , o território. Ao longo dos 19 anos em que deu aulas na UAlg escreveu 20 livros e ao lembrar estes números agradeceu a abertura e o ambiente daquela instituição, que acabaram por ser determinantes no seu percurso de produção literária.

Na altura, ao enunciar os grandes temas da sua última aula, A. Covas não teve dúvidas em sublinhar que “houve um recuo das soberanias” e que “a União Europeia é composta por pessoas e instituições cada vez mais pouco recomendáveis”. Quanto ao futuro preparou a plateia, afirmando que tem pontos quentes que estão na agenda.

Abordando a década de 2009–2019 António Covas recuou até 2008 quando a 15 de Setembro o quarto maior banco norte-americano declarou falência (Lehman Brothers). Houve uma crise do subprime que afetou a banca europeia até 2014, lembrando que entre 2009 e 2014 a Troika evitou a bancarrota de quatro países: Chipre, Grécia, Portugal e Espanha. Entre 2009 e 2019 a destacar o papel de Mário Dragui com a sua “política económica europeia pouco convencional” , sendo que o excesso de liquidez foi uma consequência com marcas que ainda hoje se sentem, e que despoletou um nervosismo crescente na UE, havendo em paralelo o crescimento de duas potências: Alemanha e França.

As redes sociais e as fake news também surgem a seguir à grande crise, e com a Primavera Árabe a fronteira sul da União Europeia nunca mais teve sossego. A acrescentar que Junho de 2016 fica na história pelo referendo do Reino Unido para o Brexit e depois houve a eleição de Donald Trump. Perante a conjuntura internacional, António Covas não teve dúvidas em afirmar que “a geopolítica passou a tomar conta da geoeconomia”, sendo que “o mísero crescimento da EU não teve capacidade de resposta para combater as desigualdades sociais”.

A grande consequência destes factos globais foi o surgimento da extraterritorialidade que levou à criação de buracos negros. E António Covas enumerou-os:

  • Pessoas/instituições indesejáveis, ou seja, pouco recomendáveis : evasão e fraude fiscal inshore e offshore passaram a estar à mão.
  • Desmaterialização do sistema financeiro. O dinheiro vai ser privatizado e a UE anda há 10 anos a discutir o mercado único digital sem chegar a uma conclusão até porque não consegue fazer frente aos gigantes tecnológicos.
  • A uberizacao criou a figura de «colaboradores», em alternativa aos tradicionais trabalhadores. Mas o que se passa é que esses agora colaboradores não têm direitos sociais nem laborais.

António Covas ofereceu diversos exemplares do seu livro «A crítica da Razão Europeia. Breve História do futuro»

A próxima década vai ser de muito trabalho para a União Europeia

E “à volta destes buracos negros gravitam criminosos e terroristas. A dark net permite essa via paralela”, sublinhou com preocupação António Covas. No que diz respeito ao comércio internacional o professor garante que “não há relações de diálogo, mas sim de poder”, sublinhando que “há muito trabalho para a UE para a próxima década”. Sendo que enumerou alguns tópicos/desafios:

a) Descarbonizacão: pacto ecológico verde. Que sanções aplicamos nós se os Estados membros não cumprirem? Porque a questão com que nos debatemos é o incumprimento. Tem de haver sanção para essa realidade, sob pena de ficarmos na mesma circunstância.
b) Monetarizacão : assinalando a evolução positiva que levou a que atualmente tenhamos duas mulheres à frente das duas maiores instituições europeias: BCE e Comissão Europeias, o professor notou que chegámos a uma altura em que as taxas de juro baixas ou a zero levam a que não haja poupanças. Considera que os cidadãos ao invés de fazerem opções de poupança fazem opções de consumo e muitas erradas. A bolha imobiliária está aí em grande força. O que fará Lagarde (presidente do BCE)?
c) Supervisão /resolução bancária. Os bancos estão a ser “resolvidos”, esse é o termo utilizado. Os infractores são beneficiados, sob a convicção de que um banco não pode falir porque tem um efeito sistémico. E quem paga é o contribuinte!
d) Mutualizacao da dívida pública europeia: António Covas defende que se a UE for ao mercado consegue uma taxa de juro baixíssima. Ao invés de ir cada estado membro que não tem a mesma capacidade de negociação.
e) Harmonização fiscal: é um tópico que está em cima da mesa das negociações dos Estados-membros com vista a amenizar a discriminação fiscal.

No que diz respeito ao tópico da Estabilização da Zona Europeia António Covas falou da regulação e da criação de leis antitrust “para desmembrar os gigantes tecnológicos”. Ainda sublinhou que “é necessário rever o Acordo de Dublin para a inclusão de emigrantes e refugiados.

“A maioria dos problemas entre Estados são de ordem cibernética. Atualmente, discute-se se deveria haver um representante europeu na área cibernética, algo como um Campeão Europeu da Área tecnológica”, contextualizou.

O auditório da faculdade de Economia da Universidade do Algarve contou com um público bastante interessado nesta última lição de António Covas

 

A geopolítica portuguesa para os próximos seis anos não será tarefa fácil

António Covas terminou a sua aula com duas notas que por si só dariam para mais uma outra lição a que muitos gostaríamos de voltar:

“O ano de 2020 vai ser pesadíssimo para o nosso país. Vamos ter de aprovar dois orçamentos, bem como temos de aprovar o orçamento para a zona euro, bem como tem de ser aprovado acordo com o Reino Unido, nomeadamente para se definir que relacionamento comercial vamos fazer com o Reino Unido! Portugal terá a presidência da UE no primeiro semestre de 2021 o que significa que o próximo ano será intenso no que diz respeito a viagens dos nossos ministros a diversas capitais europeias”.

Na segunda nota António Covas lembrou que “o Reino Unido e Espanha estão a passar por problemas constitucionais graves, sendo de sublinhar que se tratam dos nossos dois vizinhos privilegiados”. Em conclusão “a geopolítica portuguesa dos próximos cinco, seis anos tem de ser muito especial. Há quem defenda um estreitamento entre Portugal com os países do mar do Norte”, remata este professor apaixonado pelos assuntos europeus.

Esta última lição deu oportunidade para um bom debate na parte final; e que ter-se-ia prolongado se a ditadura do tempo não impusesse a sua rigidez. Foi durante este espaço de debate que o professor afirmou que “precisamos todos cada vez mais da Europa”, sublinhando, assim, uma nota de esperança.

António Covas doutorou-se em Assuntos Europeus pela Universidade Livre de Bruxelas.

Artigo foi publicado, originalmente, na plataforma Medium em 2019


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